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Uma certa esquerda bem-comportada

11-07-2014 - Jorge Bateira

Até hoje, governo e oposições, todos têm admitido, de forma mais ou menos explícita, que enfrentamos uma grave crise de dívida pública. Em dissonância com o discurso dominante, quer o prof. João Ferreira do Amaral, quer o prof. Ricardo Cabral, quer eu próprio e outros economistas do Ladrões de Bicicletas, temos insistido que a dívida externa é o problema, mais grave e mais abrangente, a que temos de responder. É certo que o Manifesto dos 74 também se referiu à dívida externa. Porém, como o debate que suscitou acabou por confirmar, ela surgia em complemento da inevitável reestruturação da dívida pública. O programa de reestruturação da dívida portuguesa, agora apresentado por Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos, é inovador porque, além da totalidade da dívida pública, atribui um lugar central à dívida externa dos bancos.

De facto, foi através dos bancos nacionais e estrangeiros, poderosos actores da financeirização da sociedade portuguesa, que as empresas, famílias e Estado criaram os sucessivos défices externos e o enorme endividamento que acumulámos. Foi também pelos bancos que entrou o capital estrangeiro à procura de lucros especulativos, sobretudo no imobiliário e em grandes negócios com o Estado e empresas públicas.

Com um sector privado muitíssimo endividado, era inevitável que, após o congelamento do crédito de 2009, as famílias, empresas e bancos dessem início a um processo de desendividamento. O esforço para pagar dívidas, a que se juntou a maior selectividade no crédito concedido por uma banca aflita para sanear os seus balanços, deprimiu a procura agregada e gerou uma grave recessão. A política de austeridade só agravou a situação. É certo que as importações também se reduziram, mas sabemos bem que esse é um efeito conjuntural.

Uma vez que a UE fixou nos tratados que o Estado só pode financiar-se nos mercados, e sendo o Tratado Orçamental para cumprir (com pouca flexibilidade), não é possível compensar a retracção dos privados com uma política orçamental keynesiana. Segundo o modelo que nos é imposto, sairíamos da crise com um crescimento puxado pelas exportações (via salários ainda mais baixos), o que exige a eliminação da contratação colectiva, despedimentos rápidos e baratos, menos impostos para as empresas e para os mais ricos. Acontece que as exportações destinadas à zona euro encontram a procura interna dos países mais ricos reprimida pela política orçamental e pela erosão do Estado social, além da concorrência da China; para fora do euro, a moeda forte é um poderoso obstáculo às exportações. As perspectivas de crescimento dentro da zona euro são, no mínimo, sombrias.

Evidentemente, com famílias, empresas, e também o Estado, todos ao mesmo tempo a tentar reduzir as suas dívidas, a recessão mantém-se e eterniza o endividamento. Assim, no quadro da UE, qualquer proposta de reestruturação da dívida portuguesa não é nem politicamente viável - a actual configuração jurídico-institucional da zona euro é a única que interessa à Alemanha - nem politicamente consequente, porque não toca na causa central do endividamento, a integração nos mecanismos de causalidade circular e cumulativa geradores de divergência (como Gunnar Myrdal bem explicou) e a inerente ausência dos instrumentos de política económica decorrentes da perda de soberania.

O programa agora divulgado serve uma táctica política implícita (ver ponto 15 do sumário executivo): a reestruturação da dívida é a primeira etapa de um afrontamento com a UE que, tudo o indica, nos levaria à saída do euro. Em meu entender, é má táctica. Para liderar o país, é necessário falar-lhe sem rodeios. Só enunciando de forma ponderada o grande objectivo da saída do euro é possível congregar vontades genuínas e mobilizar apoio popular para a hora da verdade. A esquerda que quer mostrar-se bem-comportada, escrevendo nas entrelinhas, não irá longe porque a credibilidade exige frontalidade. O povo já deu sinais suficientes de que não aceita a velha maneira de fazer política.

Jorge Bateira
Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas

 

 

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