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OMNISCIÊNCIA DO NARRADOR

27-09-2019 - Armando Alves

Eram três da manhã e Iacon ainda não conseguira encontrar em si o grupo de pensamentos que o levaria a cair no profundo sono com o qual sonhava acordado desde às dez da noite. Há algo de perturbador em esperar pelo sono. Há uma ansiedade de adormecer que contra produtivamente inibe o sono. Esta ansiedade cresce a cada minuto que passa e o tempo para dormir diminui. "Se adormecer agora, ainda consigo dormir quatro horas" dizia para si mesmo Iacon e mais duzentas e catorze pessoas que procuravam adormecer àquela hora na cidade de Jazai e que tinham o despertador programado para as apitar desalmadamente às sete da manhã. Apenas cento e cinco concretizaram as quatro horas de sono nessa noite, Iacon não estava entre elas. O que significa que às três e meia da manhã, meia hora depois do começo desta história, o que nos dá uma múltipla perspectiva de tempo aqui mesmo de vários ângulos, já só contamos com setenta e quatro almas a olhar para o relógio e a desejar ferozmente estarem a dormir antes do bater das quatro da manhã. Iacon é uma delas. (reparem como o pretérito perfeito passou a presente, resolvendo o problema de que o leitor levou menos de meia hora entre o início do parágrafo e o momento presente, e francamente, também o escritor. Levantámos no entanto outro problema com a palavra "presente" que neste contexto ocupa tantos presentes quanto o número de vezes que for lido o documento ou qualquer uma das suas cópias, mais um, o momento da escrita. Denote-se que o presente, aqui, engloba tempos futuros. Uma arte de se lhe tirar o chapéu, a escrita.)

Eu, e usar a palavra "eu" quando sou nitidamente um narrador ausente, levanta novas questões perturbantes mas já lá vamos, poderia apenas ter escrito que Iacon passou a noite em claro, ou dormiu pouco, ou poderia mesmo delinear uma hora para a qual o personagem adormeceu, mas decidi contar a história assim, criando duas histórias, ou uma história e uma lição sobre como contar histórias. Vejamos então o problema do "eu"? Quem sou eu? O autor, é claro, bem sim, e não. Não é tão linear assim. Imaginemos que o indivíduo x é autor de duas obras. Uma de ficção científica em mundos fantásticos e outra no mundo real, um policial. Podemos assumir que x, ou Sr. X, pois é autor de duas obras podemos ao menos trata-lo por Sr. e começar o seu nome com maiúsculas, deixemos a frieza para a matemática. O Sr. X é o autor de "Uma aventura no planeta Gorx" e de "Um segredo de família". Outra problemática que criámos ao criar dois nomes de obras que não existem, mas já lá vamos, se formos. Em "Uma aventura no planeta Gorx, o autor decidiu criar uma voz na terceira pessoa que sabe apenas o que o protagonista sabe, um traço comum, enquanto que em "Um segredo de família", a voz criada, tal como eu, sendo "eu" referente à voz deste texto e não o autor, sabe tudo o que se passa no mundo criado, é omnisciente. Que traços declaram neste texto a minha omnisciência neste mundo? Reparem como delineei com uma certeza inquestionável o número de indivíduos que tentavam dormir entre as quatro e as sete da manhã e quantos conseguiram. Eu possuo informação ilimitada sobre o mundo que estou a apresentar a minha sabedoria não conhece limite, eu sei quantas mentiras disseram quantas personagens em qualquer período de tempo em qualquer espaço dentro deste mundo fictício. Isto inclui protagonistas, personagens secundárias, figurantes e até personagens que nunca participaram na história. E eu sei tudo isto sem computar, sem processar dados e sem demora, apenas sei.

Este tipo de narração transcende a sabedoria do autor da peça. A minha sabedoria é infinitamente superior à do autor. O autor poderá saber tudo sobre a história mas todos os dados que não entram na unidade de narração são um mistério para ele. Mas não para mim, não para a voz omnisciente. Aí reside a força da palavra "eu" nesta narração. Mas podemos concordar que este é um caso especial em que quebramos a quarta barreira. Diria o leitor que este é um texto acerca de um homem com insónias? provavelmente não, mas aí nasce nova e controversa problemática. Serei "eu" o protagonista da história? Mas eu não tenho forma, eu não tenho existência neste mundo do qual sei tudo. Será que esta história não é passada neste mundo mas sim num plano em que a minha existência é concebida? E se sim, onde é esse plano? No que consiste esse plano, quem existe nele? Serei apenas eu e uma tela branca? Existiram elementos que desconheço neste plano de existência? Existirá um narrador deste plano? Se existe, serei eu? E se sou, obviamente não sou omnisciente sobre ele, estou à mercê de leis que não conheço. Posso eu morrer? Posso eu ser surpreendido? Sejam quais forem as respostas a estas questões, uma voz omnisciente tem dúvidas e esse facto por si já desafia algumas leis.

Armando Alves

 

 

 

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