As esquerdas e o PS pós-directas
04-07-2014 - Jorge Bateira
No centenário da Grande Guerra, é importante lembrar que, em Setembro de 1914, o governo alemão dispunha de um documento estratégico sobre os objectivos da guerra de que constava o seguinte ponto: "Uma grande união económica da Europa Central, sem cabeça constitucional comum, sob a aparente igualdade dos seus membros, mas de facto sob direcção alemã" (ver Jean-Pierre Chevènement, 1914-2014, L'Europe sortie de L'histoire? , Fayard; p. 103). Para além do debate sobre a natureza do pangermanismo e do nazismo - há quem sustente que o nazismo rompe com o nacionalismo alemão (Jacques Sapir, 18 juin , RussEurope) - este documento recorda-nos que, desde a unificação conduzida pela Prússia, diferentes forças sociais e movimentos ideológicos convergiram para que a Alemanha adoptasse muito cedo uma estratégia de afirmação económica e política, na Europa e no mundo.
Com as negociações que conduziram à reunificação no século xx, o pensamento económico dominante na Alemanha (ordoliberalismo) hegemonizou a construção jurídica e económica da UEM ao ponto de "o aluno dócil se ter transformado no tutor da Europa" (Ulrich Beck). Lembremos John Adams, o segundo presidente dos EUA: "Há duas maneiras de conquistar e subjugar uma nação. Uma é pela espada, a outra é pela dívida" (citado por Chevènement, p. 247). Hoje, através de um mercantilismo agressivo, apoiado por mercados financeiros em roda livre, a Alemanha procura conquistar um lugar cimeiro na economia política internacional do século xxi. Omitindo que financiou, através dos seus bancos, a dívida externa das periferias para escoar os seus produtos, submarinos incluídos, a Alemanha procura agora "moldar" a zona euro através do Tratado Orçamental, a que acrescentará pacotes financeiros específicos destinados a comprar a anuência dos partidos sociais-liberais.
Para sabermos como enfrentar esta crise, devemos ter presente que a Alemanha não vai pôr em causa o seu modelo económico. E não vai aceitar uma UE federalizante, se isso significar a responsabilidade por transferências financeiras avultadas, de natureza permanente, sem montante definido à partida (8%-12% do PIB alemão durante muitos anos; contas de Jacques Sapir ). Nem vai aceitar que o BCE, ou qualquer agência europeia no seu lugar, assuma as dívidas impagáveis da periferia. Isso seria pedir à Alemanha que, de um dia para o outro, abandonasse os princípios da sua "economia social de mercado", "uma visão antiga, institucionalmente enraizada e que recua à sua experiência de industrialização tardia" (Christopher Allen, " The Underdevelopment of Keynesianism in the Federal Republic of Germany ", p. 289). Por isso, como afirma um economista alemão, "é literalmente impossível para a mentalidade alemã admitir que a própria Alemanha possa de facto ser parte do problema do euro" (Jörg Bibow, " Are German Savers Being Expropriated ").
Colocada a crise nesta perspectiva, o que se pode esperar da disputa pela liderança do Partido Socialista?Aparentemente, trata-se de escolher o candidato mais capaz de vencer as próximas eleições e participar numa (imaginada) coligação das periferias que, chegada a hora, imponha uma reestruturação honrada das dívidas e uma interpretação suave do Tratado Orçamental. Qualquer que seja a escolha dos socialistas, há algo que as esquerdas têm obrigação de ter presente quando tiverem de se relacionar com o PS pós-directas: confrontada com exigências que põem em causa a sua estratégia, a Alemanha não hesitará. Tratando-se da sua forma de ver o mundo, e do seu lugar nele, a sua escolha está feita e não releva da racionalidade económico-financeira. As esquerdas têm obrigação de saber que a Alemanha não prescinde da sua autonomia estratégica, com o euro nas suas condições, ou então sem o euro. Alimentar a ilusão de uma reforma progressista da UE só pode conduzir ao desastre nos partidos políticos que a protagonizarem.
Jorge Bateira - Economista
Voltar |