Austeridade e democracia
27-06-2014 - André Freire
Numa democracia, as eleições têm duas funções: representar as preferências políticas dos eleitores no Parlamento e no Governo; responsabilizar os governantes pelos governados.
Para o adequado funcionamento da primeira há dois pressupostos que devem ser cumpridos: os eleitores escolhem tendo em conta as propostas que lhe são feitas pelos partidos em cada eleição; uma vez eleitos, os deputados e os membros do governo do(s) partido(s) vitorioso(s) empenham-se em concretizar os compromissos políticos assumidos com os eleitores. Claro que o governo democrático, liberal e representativo deve também submeter-se ao império da lei, à separação de poderes, à jurisdição constitucional e aos direitos fundamentais.
Conforme documentei numa compilação de estudos recentemente dada à estampa, se há algo que caracteriza a governação atual é o facto de se tratar de um exercício sem mandato: de forma reiterada, em medidas de extrema gravidade e numa extensão nunca antes vista, a direita tem governado em contradição com os compromissos que assumiu com os eleitores e com o programa original da ‘troika'. Alguns defendem que tal era inevitável dada a necessidade de correção das contas públicas e os compromissos com a Europa. Estão equivocados.
Primeiro, porque numa investigação recente foi demonstrado que, por um lado, os governantes não são mero joguetes nas mãos da ‘troika' e que, por outro lado, dada a proximidade das preferências ideológicas da maioria face às do FMI-BCE-CE, a direita tem usado deliberadamente o resgate para fazer passar medidas que nunca foram a votos e muito dificilmente passariam no crivo popular. Segundo, a assimetria na aplicação dos "ditames" da ‘troika' evidencia que não há nenhuma inevitabilidade, há discricionariedade. Basta recordar os cortes nas rendas das ‘utilities' ou das Parcerias Público- Privadas, que o memorando exigia, e que foram minimizados.
Terceiro, tais magros cortes mostram que não há nenhum imperativo incontornável de correção das contas. A baixa do IRC, bem como os cortes nas pensões que deixam de fora as dos fundos privados, são mais provas disso mesmo. Quarto, a péssima trajetória da dívida pública (93%, 2010; 130%, 2013) concorre no mesmo sentido. Quinto, o alegado dilema entre "cortes na despesa" e "aumentos de impostos" é uma falácia: os cortes em salários (dos funcionários públicos) e nas pensões não são mais do que impostos iníquos porque lançados só sobre determinadas categorias de pessoas, e por isso o TC os chumbou.
No período do resgate, a democracia tem sido muito comprimida, movendo-nos em direção ao polo oposto (autoritário), mas não há nada de inevitável nisso: há claras escolhas políticas dos governantes portugueses à revelia do mandato que receberam dos eleitores.
Económico.pt
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