O estado a que chegámos
20-06-2014 - Jorge Bateira
No dia 10 de Junho, o Presidente da República teve um desmaio que obrigou à interrupção do seu discurso por longos minutos. A imagem do comandante supremo das Forças Armadas desfalecido, a ser retirado em braços, teve para mim um evidente simbolismo. Não pude deixar de a associar à célebre expressão usada por Salgueiro Maia na madrugada do 25 de Abril: "o estado a que chegámos".
De facto, no Dia de Camões, o dia da Pátria, o Presidente apelou a um entendimento entre PSD, CDS e PS sobre reformas políticas de fundo que garantam a sustentabilidade da dívida pública, afirmando até que esse entendimento deve ir além das "vicissitudes partidárias ou de calendários eleitorais". Ou seja, o Presidente apelou a um acordo político "de tempo longo" por forma a eliminar diferenças substantivas nas propostas dos maiores partidos da democracia portuguesa. Estes foram instados a aceitar uma política única, seja na votação do Orçamento para 2015, seja nas próximas eleições legislativas. Quarenta anos após o 25 de Abril, é este o estado a que chegou a nossa democracia.
No fundo, o Presidente está a dizer aos portugueses que, para cumprir o Tratado Orçamental, Portugal tem de esvaziar de conteúdo a sua democracia. Como agora está bem à vista, não é possível (1) viver num Estado-nação, (2) prescindir da soberania monetária e orçamental e, ao mesmo tempo, (3) manter um Estado social, de direito e democrático (ver o meu texto " O trilema", 31 Outubro 2013). O Presidente da República assume que devemos ignorar o Artigo 7º, n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, que condiciona o exercício dos poderes das instituições da UE ao "respeito pelos princípios fundamentais do estado democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial". De facto, a sujeição permanente do país a uma política depressiva não é compatível com estas condições que a Constituição fixou para a nossa participação na União. Não sendo jurista, arriscaria mesmo dizer que o Tratado Orçamental que a Assembleia da República ratificou é, em última instância, inconstitucional.
Os resultados das recentes eleições para o Parlamento Europeu foram expressivos, pelo menos num ponto: qualquer avanço no sentido do reforço dos poderes da Comissão Europeia está vedado. É esse o significado da dificuldade em colocar Jean-Claude Juncker, um federalista, à frente da Comissão. Mais ainda, com o sucesso eleitoral da Frente Nacional em França e do UKIP no Reino Unido, a que se junta a significativa votação no Alternativa para a Alemanha, os partidos "do arco da governação" destes países ficam sob pressão para recusar qualquer reforço da integração europeia. Pelo menos, no centro da UE há cada vez mais quem pense que "Juncker faz parte de uma facção do continente que sonha transformar a união monetária europeia numa união da dívida" ( Spiegel, "Europe's Juncker Bond").
Neste contexto político, não estão à vista condições que permitam ao BCE intervir nos mercados financeiros comprando tudo o que for necessário para trazer a inflação de volta aos 2% (em todo o caso, pouco provável sem o apoio da política orçamental) e, quando a volatilidade regressar, para manter as taxas de juro da periferia nos actuais níveis. Como disse um operador financeiro, "O receio é que [o BCE] não pode, e que não realizará, o impulso tremendo que é necessário para dar plena saúde à zona euro. No entanto, [o que foi decidido] é mais do que suficiente para antagonizar a opinião pública alemã" (ver "The Telegraph", "Mario Draghi takes historic gamble").
Com a democracia esvaziada, desemprego em massa, emigração em larga escala, serviços públicos a degradarem-se, uma dívida impagável, totalmente dependentes dos mercados financeiros, é este o estado a que chegámos. Se sair do euro não é a alternativa, então qual é a alternativa?
Jorge Bateira - Economista
Voltar |