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O MUNDO NÃO É ELÁSTICO - VIII

30-11-2018 - Jorge Duarte

Alimentos. Alimentar-se é a preocupação que acompanha o homem de todos os tempos. As disputas pelos territórios bem irrigados e productivos, também. Porque a riqueza provinha da terra e quem a controlasse possuía uma ampla vantagem sobre os adversários. Abundam exemplos de fomes bíblicas na História, e o agricultor sempre o mais miserável de todas as classes. A mesma História que registou a abundância do sustento dos europeus pela introdução da batata no séc. XVI, vinda dos Andes, e reconheceu a sua contribuição para a grande redução de conflitos por longos períodos.

A Inglaterra foi pioneira na Revolução Agrícola que a alavancou para a Revolução Industrial que se seguiu. E acabou a fome na metade rica do mundo. Mas este, apesar da riqueza e do avanço tecnológico nunca mais deixou de se dividir entre vencedores e perdedores, pelo que, a outra metade, principalmente a África e sul da Ásia, com quase 40% dos subnutridos do mundo, continuará a disparar, insuflada pelo aumento esperado de mais 25% da sua população até 2050. Na Ásia urbana nascem mais 5 000 pessoas a cada hora que passa.

Apesar disso, desde os anos de 1960 até hoje, não pára de crescer a produção global de cereais. Tendo neste mesmo período duplicado a população, de 3 para 6 mil milhões, a produção global de alimentos mais do que duplicou. Devia bastar a todos, mas entre 30 a 50% não é consumida e acaba no lixo, nos países industrializados. Este desperdício daria para alimentar 1 000 milhões de pessoas. Alguém disse que «as pessoas podem ver a miséria e não a notar, até que a própria miséria se revolte». Até para o velho Aristóteles a miséria lhe não era indiferente: «(…) e os que foram mal tratados e acreditam que foram mal tratados serão terríveis pois estão sempre em busca da sua oportunidade». Basta olharmos para os sinais dos tempos de hoje. Serve-nos de alerta.

Nos anos 60-70 (séc. XX), surge a ideia apelativa da Revolução Verde que prometia acabar, finalmente, com a fome em África e em todas regiões pobres. A introdução de maquinaria, sementes de alto rendimento produzidas em laboratório ou agrotóxicos foi o que saiu desta caixa de pandora, fazendo acreditar que o contínuo crescimento da produção de alimentos era possível. Em muitos casos foi, mas as experiências falhadas no continente africano com culturas inadaptadas, maquinaria depressa avariada com o pó do deserto ou produção de alimentos diferentes dos adequados às necessidades e preferências das populações locais derreteram milhões, para nada. A rentabilidade das colheitas não aumenta substancialmente por esta via, aumenta sim, à custa da expansão das áreas agrícolas, muitas delas resultantes da desflorestação (para não falar da preferência das culturas para biodiesel).

A verdade é que em 100 anos já se perdeu cerca de 75% da diversidade agrícola. Na América, um terço das terras estão estéreis. Os estudos indicam que nos países em desenvolvimento são os pequenos agricultores que produzem quase 80% dos alimentos. Convenhamos: há certas técnicas que se não forem conscienciosamente usadas, à medida que libertam de uma servidão estão a criar outra.

A era dos transgénicos e agrotóxicos que prometia acabar com a fome no mundo, praticar uma agricultura mais limpa e facilitar da vida do agricultor, temos: mais fome do que nunca, níveis de intoxicações e contaminações alarmantes e perda de 75% da diversidade. As pragas adquiriram resistências que forçam a aplicação de tóxicos ainda mais potentes. Os pequenos agricultores (os tais que produzem 80%), perderam as sementes ancestrais e tornaram-se dependentes de sementes “melhoradas”, patenteadas pelas multinacionais e que se autoextinguem. Temos hoje uma agricultura autodestrutiva.

Culminando o processo, são as mesmas empresas que produzem os transgénicos e tóxicos que analisam e fiscalizam o seu uso – porque também detêm os meios. A raposa a guardar o galinheiro.

Mas não precisamos sair das nossas fronteiras: Portugal é o segundo país da Europa que mais cultiva milho transgénico. A autorização foi em 2005 mas o célebre episódio da destruição do primeiro hectare de milho transgénico por um grupo de ambientalistas em Silves, foi em 2007. Entretanto, o cultivo está generalizado. Mas importamos 85% dos cereais que consumimos.

No caso do milho OGM, a produção não é substancialmente mais elevada que a do milho tradicional, simplesmente o torna resistente à lagarta broca, que muitas vezes reduz as colheitas. A engenharia genética introduziu uma proteína no milho que está presente em todas as suas células de modo a que quando a broca come o milho, essa proteína entra na lagarta, ataca-lhe o intestino e ela morre.

Este é o princípio. O mesmo acontece com todos os cereais e frutos. Selecciona-se os genes resistentes ao calor, às pragas, à sede. Transporta-se genes de umas plantas para outras e mescla-se parte das suas características. Finalmente, se eu sou alérgico a um fruto, passo a sê-lo para tantos outros quantos neles esse gene estiver presente.

É certo que toda a planta faz alteração genética natural ao longo da sua história evolutiva. Mas esta alteração aleatória de adaptação, de aperfeiçoamento, de burilamento, é feita numa escala milenar e segura. A modificação genética artificial é súbita, e, pior, não pode voltar atrás, aconteça o que acontecer.

Já no final da década de 1990, um relatório na América do Norte calculava que mais de 500 pragas de insectos, 27 espécies de ervas daninhas e 150 doenças de plantas são agora resistentes a um ou mais pesticidas.

Os EUA, são, sem dúvida, o país que mais usa estes produtos da ciência; 80% dos antibióticos são usados na agropecuária e/ou doenças da fruta, além das hormonas de crescimento. O resultado é o surgimento, mais uma vez, de novas bactérias resistentes. Nesta área, como na saúde humana, estamos a entrar na era pós-antibióticos, sem solução para as novas e multirresistentes estirpes. Porque se morre tanto nos hospitais vítima de bactérias? Porque é aqui que mais se usa antibióticos. Na lógica da selecção natural, sobrevivem os mais resistentes. Mas para estes já não há meios de combate. Novos antibióticos necessitam do investimento de muitos milhões e também de muitas décadas de ensaios; e quanto mais abusarmos dos que temos, pior.

Perdem-se anualmente milhões de hectares de solo extenuado e contaminado. O ser humano passou de uma base alimentar milenar, com predominância dos cereais, leguminosas, hortícolas e carne em alturas raras, para uma dependência quase total de produto animal e derivados. Esta mudança súbita representa uma das maiores catástrofes ambientais e também para a saúde.

Em nenhuma época a humanidade se alimentou quase exclusivamente de produto animal. A carne era um bem muito raro; praticamente exclusivo para dias de festa. À conta desse consumo, devastam-se florestas para pastagens, contaminam-se solos e rios com antibióticos e hormonas presentes na urina; o metano expelido e o consumo energético de água e energia é brutal. Veja-se: para que se obtenha 1 kg de carne são necessários, aproximadamente, 10 kg de cereais; e se 1kg de carne alimenta 4-5 pessoas, 10 kg de cereais alimentam umas 25. Fácil é fazer as contas às toneladas de ração e água para que uma vaca atinja 300kg. Esqueça, para já, as hormonas, cortisonas e antibióticos presentes em cada bife de vaca que come e para o qual foram necessários 3 000 litros de água para o produzir (Carlos Pimenta, 2018).

Há países como a Nova Zelândia, Brasil ou Argentina, por exemplo, muito famosos pelas suas criações de gado bovino. Faça-se as contas à desflorestação, consumo de rações, contaminação, abate e transporte, distribuição em contentores pelo mundo, armazenamento grosso, mais transporte retalhista e conservação doméstica, sempre em sistema de frio. São milhões de toneladas a viajar pelo mundo, movidas a combustível fóssil e outros tantos milhões em energia para conservação/congelação.

É por estas e por uma imensidão de outras razões que os estudiosos afirmam que metade de toda a energia produzida nos últimos 2 000 anos, foi produzida e consumida nos últimos 100.

Acresce que o cereal pode ser produzido localmente e não carece de processo especial de conservação ou armazenamento. Contém a necessária proteína para a alimentação humana e não precisa de antibióticos.

“Ah, mas o cereal não alimenta!”...Alimentou toda a humanidade até à nossa era. Um touro alimentado a ração de cereais, à nossa frente, não é propriamente um adversário que nos deixe tranquilos; e um exército de vietnamitas alimentados a bolinhas de arroz eternizou a derrota do maior exército do mundo alimentado a ração de carne e com mais tecnologia. As gerações de homens pequeninos e de olhos oblongos (como o arroz que nutriu o seus antepassados), são os mesmos que hoje detêm a supremacia no mundo, e embora tenham já mudado substancialmente a sua dieta, o arroz continua a ser a base.

Mas deixemos os mitos bons e os mitos más. Não é minha intenção fazer a apologia do vegetarianismo nem pretender abolir o consumo de produto animal mas sim que se tenha consciência das consequências e dos limites, pois é aqui que está um dos impactos mais negativos no mundo. Menos floresta, menos água, menos terra para cultivo, mais pobreza, mais antibióticos, mais gás metano na atmosfera, mais consumo de energia, mais aquecimento global. Porque setenta a oitenta por cento dos cereais cultivados no mundo é destinado a rações animais.

Certo é que hoje mais de um quarto da população é obesa e uma parte ainda maior, diabética. Como os números vão crescendo, chegará ao ponto em que os custos decorrentes do modo de vida nos países desenvolvidos absorverão todo o dinheiro destinado à saúde. Actualmente (diz a OMS), 2,8 milhões de pessoas morrem anualmente com problemas relacionados com a obesidade. Em Portugal, um estudo de 2017 diz que um terço das crianças já é obesa. Foi recentemente noticiado pela Associação de Nutricionistas que o número de obesos em Portugal se aproxima já dos 50%.

Também a FAO, aponta para que até 2050, a área destinada à agropecuária deverá aumentar 144 milhões de hectares. Com a classe média a aumentar no mundo, cresce o acesso à carne e ao aumento do seu consumo.

Além da carne, também o peixe. As frotas cada vez maiores, a tecnologia incorporada que a torna mais eficiente ao detectar a localização exacta dos cardumes, pesca de peixes imaturos, pesca de arrasto e redes de cerco com mais quilómetros de extensão, não há peixe que consiga escapar. No caso de Portugal, um dos maiores consumidores de peixe da Europa, depois de frança, Espanha e Suécia, e também a Islândia, já esgotamos, nos primeiros cinco meses, o stock de pescado local permitido.

Mesmo os mares europeus não fornecem já o suficiente para metade do próprio consumo, tendo a Europa de recorrer a países externos para o fornecimento restante.

Uma das vias alternativas tem sido a aquicultura. Segundo a ONU (2012), a produção aquícola tem crescido a uma taxa média anual de 6,1%, tendo no ano de 2009 contabilizado uma produção de 56 milhões de toneladas.

A exploração é forçada por toda a parte onde chega a sobre-exploração e agroindústria: autênticos mares de plástico cobrem as estufas que se estendem por milhares de hectares, da Espanha à Holanda. Iluminação artificial onde as plantas crescem noite e dia, já sem distinção da época, em monoculturas ultra-intensivas. O mesmo com porcos, aves e outros animais, privados de tudo menos de crescer e engordar rapidamente, no pressuposto de seres não vivos, como o são os trabalhadores robotizados com vidas paralelas à dos animais e sujeitos a todos os ajustamentos tecnológicas que permitam fazer mais com muito menos.

É aceitável e necessário que se alterem e modifiquem os processos de produção agrícola, contudo, atente-se à prudência, porque «um burro caminha sem dúvida devagar, mas os acidentes são raros», como dizia um dirigente chinês.

No caso da União Europeia, o Orçamento para a Política Agrícola é de 40%. Os fundos destinados a Portugal, dentro do Programa de Desenvolvimento Rural para a conversão à agricultura biológica, por exemplo, foram em 63% absorvidos para a produção animal – pastagens, forragens. 80% da área de produção de agricultura biológica em Portugal liga-se à produção de carne.

Diz um relatório da Conferência do RIO+20, em 2012, que «a agricultura é o maior empregador único, proporcionando meios de subsistência para 40% da população global actual. É a maior fonte de renda e emprego para famílias rurais pobres».

Não é lisonjeiro o panorama aqui traçado. Certo é que os hábitos humanos têm de mudar. Não sendo por vontade própria, será pelas circunstâncias.

Jorge Duarte

Continua na próxima edição

 

 

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