Votar pela democracia
16-05-2014 - Jorge Bateira
Se ainda há quem fale da UE, e do euro em particular, como protecção contra as crises financeiras é porque tem memória muito curta.
As sondagens da UE têm registado um crescente cepticismo dos cidadãos relativamente ao que se convencionou chamar o "projecto europeu". As políticas adoptadas desde 2010 apenas estenderam à periferia o descontentamento que em 2005 já tinha levado à rejeição do Tratado Constitucional no centro da zona euro. A verdade é que o modelo de crescimento pelas exportações no centro, com salários estagnados, dependeu em boa parte do financiamento que concedeu à periferia, onde alimentou um crescimento pelo crédito que estava condenado a terminar mal. Hoje, os dirigentes políticos do centro culpam a periferia pela sua sorte como se não tivessem responsabilidades nesta crise. Mais, através do "apoio financeiro" da troika, resgataram a dívida da periferia aos seus bancos e, invocando o seu estatuto de credores, preparam-se para impor às periferias um modelo de sociedade neoliberal sem qualquer legitimidade democrática. Afinal, o "projecto europeu" conduziu à divergência económica, ao contrário do que prometia.
É também preciso dizer que o "projecto europeu" não promoveu a fraternidade europeia. Hoje, o ressentimento entre europeus cresce porque o desastre social imposto à periferia, como punição pelo seu "despesismo", foi concebido nos corredores do poder do centro da zona euro. Nesta, o desemprego é o mais elevado de sempre, tem um nível de Grande Depressão nas periferias, e empurra boa parte das economias para a deflação. É caso para dizer que o "projecto europeu" se virou contra os europeus, lançou-os uns contra os outros e estimulou a xenofobia. Dado que uma parte importante das classes baixas deixou de se identificar com as esquerdas, a grave crise que vivemos também é uma crise política. É uma crise das democracias europeias.
Por outro lado, é preciso lembrar que a paz na Europa se ficou a dever muito mais ao poder de dissuasão nuclear que a Grã-Bretanha e a França adquiriram, ao lado dos EUA, contra a URSS, do que aos méritos da CEE, depois UE, como força de paz. Aliás, como bem recorda Jacques Sapir ("Sortir de l'Euro"), "a UE foi causadora de conflito quando precipitou a desintegração da ex-Jugoslávia e a guerra civil daí decorrente. [...] A oferta de um plano de estabilização [à Eslovénia e à Croácia], cujos efeitos seriam desigualmente distribuídos pelas Repúblicas da Jugoslávia, atiçou a oposição entre a Croácia e a Sérvia. E foi a perspectiva de uma rápida adesão à UE que convenceu os dirigentes eslovenos e croatas a provocarem a secessão. O mesmo fenómeno está hoje em curso na Ucrânia."
Finalmente, se ainda há quem fale da UE, e do euro em particular, como protecção contra as crises financeiras é porque tem memória muito curta. A globalização financeira, de que a UE se tornou um bastião, permitiu o rápido contagio da crise de 2007-8 iniciada nos EUA e, dada a aberração institucional da zona euro, gerou uma crise de dívida pública que mascarou uma gravíssima crise de dívida privada, já existente. Ambas estão longe de terem sido resolvidas.
Com um Banco Central sem tutela política, e com um governo económico que invoca uma legitimidade tecnocrática para ocultar o domínio dos países do centro, o projecto ordoliberal consolidou-se: submeteu as escolhas dos eleitorados à ideologia ordoliberal dos Tratados e das directivas que o Tribunal de Justiça fará cumprir. Ignorar o erro da criação da moeda única e a natureza antidemocrática do actual "governo económico", fingindo que estamos a eleger o presidente da Comissão Europeia, só prolonga uma farsa insustentável. Como alternativa, propor um Estado europeu, pós-Estados democráticos, quando evidentemente não há um povo europeu, revela uma trágica preferência pela engenharia social e, sobretudo, deixa à vista uma grande insensibilidade à urgência em pôr fim ao desastre que estamos a viver. Os democratas não podem ignorar que os Estados do centro rejeitam uma União de transferências e que os da periferia querem continuar a fazer escolhas genuínas. Também por isso, no dia 25 de Maio é preciso votar contra a utopia federalista das elites europeias.
Jorge Bateira
Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas
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