DESDE AS BRASAS DA SANTA INQUISIÇÃO
16-02-2018 - Jorge Duarte
Havia um prosador que defendia não ser a juventude a melhor época da nossa vida. Há ainda poucas memórias acumuladas e, por isso, recorre-se ao sonho e à imaginação, numa ânsia de fruição total da vida. A juventude é, por essa circunstância inocente, uma época de inquietude. Pelo contrário, na idade da velhice, dá-se uma quebra da imaginação mas compensada com a acumulação de memórias com que se brinca e se esclarecem as explicações para as coisas do mundo, com serenidade.
A primeira década da minha existência foi vivida num dos lugares mais naturais e aprazíveis que se pode desejar, no centro da verdadeira mata mediterrânica. Uma infinita variedade de flora e fauna. Aprendi a utilidade, os truques e os nomes de muitas dessas espécies. E, sem inquietude, valeu a pena!
Já não ouço falar em mata, só floresta. Reduzir mata a floresta é como reduzir pessoa a mero contribuinte. Não há lugar à diversidade apenas hegemonização, monocultura.
Por essa altura, nunca tive conhecimento de um grande incêndio na serra. Como ninguém falava em incêndios também nunca me ocorreu perguntar porquê. Só recentemente questionei alguns octogenários sobre incêndios no seu tempo. Eram raros – disseram - e as pessoas sabiam lidar bem com o fogo; ao primeiro sinal, toda a gente ocorria com os meios que tinha para apagá-lo, logo no início. Se o cerco não fosse suficiente, faziam um contrafogo. Não houve caso em que isso não resultasse. De resto, os telefones eram escassos ou inexistentes e os bombeiros a 15 quilómetros e com meios rudimentares. E a serra nunca ardeu - que se soubesse nesse tempo.
O fogo existe antes do homem e o homem da serra conhece-o desde que nasce. Depois do calor da mãe, é o calor da lenha que o aquece e lhe coze o alimento. Há cinco décadas atrás, era o único combustível. O gás e a electricidade são a modernidade que entrou depois e, com ela, muitas outras coisas incluindo os incêndios incontroláveis, o desleixo e a impunidade.
Pode dizer-se que nesse tempo havia mais limpeza das matas, mais gente nas áreas rurais, etc.. É verdade! O mato servia para o fogo doméstico, para a cama dos animais, para estrume fertilizante das terras e para carvão.
Mas a limpeza não se fazia somente pela utilidade, fazia-se também – e talvez antes de mais – por aprumo, por orgulho, por dignidade e por respeito. Toda a gente se orgulhava de apresentar o seu terreno limpo, como que a dizer “isto aqui tem dono”. Era semelhante ao orgulho em caiar as casas na Primavera, os poiais, os muros, a cor das barras e das platibandas.
Mas, ao existir mais gente – que só usava lenha como combustível - existia uma exponencial probabilidade de descuido e de ignição. Todos faziam queimadas na limpeza dos campos. E não havia datas ou épocas proibidas, como hoje. Os homens iam à noite à taberna, fumavam, bebiam uns copos (de aguardente de medronho), tinham isqueiros a petróleo, fósforos e conduziam-se, as mais das vezes, com uma lanterna também a petróleo. Os motores de rega eram a gasóleo e petróleo, a carne, a couve ou as papas de milho eram feitas com fogo de lenha, em casa ou num abrigo exterior, tal como o forno. Tudo era combustível e/ou altamente inflamável; um perigo em potência. Mas não havia incêndios.
A maioria das casas perdia-se por entre o arvoredo, sobretudo sobreiros. Nunca me pareceu um meio perigoso como nunca o pareceu a ninguém. Havia árvores centenárias, tal como havia casas de igual longevidade, sem quaisquer vestígios de incêndio.
E, quase de repente, tudo mudou. Bebedeira de liberdade e irresponsabilidade.
Os anos 80 (séc. XX) foram perturbadores, os anos 90, trágicos. E, de tragédia em tragédia, se foi reduzindo o país a cinzas até aos dias de hoje. Já não se assistia a tantas fogueiras desde as brasas da Santa Inquisição. E se esta tinha um fim “purificador”, os fins de hoje são menos divinatórios.
As paisagens luxuriantes deram lugar a paisagens lunares. Sucumbindo às chamas, transforma-se este rectângulo num torrão fundido onde as próprias pessoas, subtraídas de futuro, já não reconhecem os lugares onde nasceram, mais desistindo que persistindo. E, ao pessimismo de uns eleva-se o optimismo de outros: uma vez “industrializada”, a actividade por demais lucrativa, não pode parar.
A natureza trabalha sozinha; chuva e sol é quanto basta e o vegetal cresce enquanto o homem descansa. Depois, é só escolher por georreferenciação o próximo local de fogo. O circo está a postos: decreta-se a abertura da época, anunciam-se as cores dos avisos, as zonas de alto risco, e seguem-se os relatos emocionantes como no futebol, mais os briefing’s com as “Altas Autoridades”, os directos televisivos com grandes planos impressionantes dos lamentos e das lágrimas, as respectivas homenagens ao heróis da paz e, por fim, as condolências ministeriais ou presidenciais às famílias enlutadas. Encerra-se a época e o espectáculo segue no ano seguinte.
Os culpados? Os de sempre: a população que abandonou o meio rural e desertificou o interior; que não limpa a “floresta”; que constrói junto às árvores; que só planta eucaliptos e pinheiros… Uma população tão má que não sabe agradecer a uma classe dirigente de altíssima qualidade.
A mesma classe que há décadas e décadas não procedeu a uma reforma e ordenamento florestal como devia, que acabou com os guardas florestais, com os cantoneiros, com os guarda-rios, que incentivou e forneceu gratuitamente os próprios eucaliptos, que não limpa as bermas das estradas, que não persegue e condena os incendiários, que não desmantela as organizações criminosas que ateiam e beneficiam com os incêndios, que promove o laxismo e premeia o crime e o desrespeito.
A mesma classe que encerrou escolas, centros de saúde, correios… Que subsidiou o desincentivou a agricultura, que tem cativado todo o investimento possível na capital e nas zonas litorais em desfavor do interior.
A mesma classe que, finalmente, se desnudou, após o resultado da última catástrofe mostrando toda a sua inoperância e incompetência. E, à boa maneira de quem é pequeno e se pretende mostrar grande cortando a cabeça do outro, vem agora pungente e desmedida, com uma legislação apressada e estúpida, transformar as vítimas em culpados.
Os agentes de execução incumbidos para “Um Portugal Sem Fogos”, são as autarquias. As coimas são duríssimas, os conflitos que se antecipam serão violentos. Mas os fins (os milhões) justificam os meios. É sabido que não há casa fora dos aglomerados urbanos que não possua árvores – mais a mais num perímetro de cinquenta metros e quantas delas são o ar condicionado dos pobres, no Verão - e nos milhares de quilómetros de estremas das propriedades rústicas, muitas das quais já nem os proprietários existem ou os herdeiros as conhecem.
Vai ser uma tarefa ciclópica, própria de uma ambição napoleónica.
Os conflitos são certos, o abate de árvores será comparável ao necessário para a epopeia dos Descobrimentos na construção de naus ou da construção do caminho-de -ferro do século XIX. O que não ardeu pelo fogo arde/abate-se por força da Lei, numa escala apocalíptica. A menos que o que se pretenda seja, à custa dos processos executivos decorrentes do incumprimento, impossibilidade/ incontactabilidade dos proprietários, um meio para a expropriação e estatização da propriedade rústica ou alternativas ainda mais obscuras...
Jorge Duarte
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