Golegă
10-11-2017 - Pedro Barroso
Golegã, a terra serena já ferve por baixo do parecer. Agita o tempo. Programa-se cuidadosamente a festa; mas outra há, improgramável e latente. Vem aí uma espécie de visto para um espaço indescritível e breve que vive algures entre o paraíso e a loucura. Olé.
Golegã vai fazer-nos buscar os botões de punho guardados, os selins de luxo, os chapéus; engraxar as botas de montar; montar as casetas dia e noite, pintar fachadas e portões, limpar estábulos, numa bendita pressa que esta terra tem de exibir os ricos.
E os ricos-pobres de sempre. A fingir de ricos.
Vai beber-se cerveja demais. Vai haver negócios escondidos, segredados portas dentro, madrugadas fora. Engates breves e fulgurantes; não só os de cavalos; outros, humanos. Para a vida, quem sabe.
No campo, o Zé da velha vai apanhar e aparar varas de marmeleiro, para vender ao molhe e pagar a divida acumulada na tasca.
Cavaleiros de aviário recebem as últimas lições pelo país fora, para não dar muita barraca quando, ufanos, fizerem a manga. Meninas de bem são instruídas; para ver se finalmente, “que raio, rapariga, puxa por ti e vê me ficas casadoira!”.
Inefável mundo dos cavalos.
A sexagenária Bo Derek – que já foi a mulher de sonho, escala dez…- voltará, como vem sempre, para ver ou comprar cavalos lusitanos para a sua coudelaria lá na Califórnia distante.
Lusitanos de duas e de quatro patas, somos todos isto. Vontade súbita de montar e engatar, expectativa renovada e antiga de um futuro não sei quê, mas aficionado qb e colorido.
Castanhas de sal crepitando na saudade. Samarras e chapéus.
Amo-te muito, meu querido Ribatejo.
O que eu sofri para te ver mais uma vez. Meço os anos em S. Martinhos. Mas cá estou. Acho que consegui, caramba. Olé.
Este é mais um; e já não me escapa. A silly season dos cavalos está aí.
O jogo das mentiras e dos trajes; em que o escriturário amanuense vira marialva e aristocrata de 1900.
As damas de calça justa, - gosto; ou de saia-calça longa; enfim… Pertence. Tenho de aceitar. Os seus tocados de rede. O chicote de montar na mão, sim, que “o cavalo esta logo ali, não vê?” E os grupos que interrompem a manga, feitos parvos, de copo na mão.
Estrangeiros, muitos; altos e louros. Dos de fora, longe mesmo, dos que falam cinco línguas e meia. E o Bernardino vagamente aviscondado, sempre à coca, interpretando francês, a troco de uns jantares de perdida fartura e eterna prosumpice.
A velha burguesia sai da vergonha e mostra-se lustrosa, quatro na mão, ao mundo do respeito.
A ralé do ordenado mínimo, essa, fica contemplando os cavaleiros passar.
O puto pede um cavalo ao avô.
- “Tá bem, meu querido, para o ano vamos ver”.
E chora por dentro o neto cavaleiro que bem sabe nunca poderá ter…
Os restaurantes estupidamente caros, onde a carne à Mercês vira “de alguidar”. Ou vice-versa. E o fumo das cozinhas improvisadas galga nas mesas; tudo envolto em cheiro a cavalo, presunção, ilusão e pose.
Penas de faisão no chapéu de meras funcionárias notariais, hoje promovidas a cavaleiras suburbanas.
O engenheiro que sonhava ser toureiro. O médico que sonhava ser empresário agrícola. O professor que sonhava ter uma coudelaria.
O Esteves, que sempre sonhou ser muito rico. Bimbo profissional.
O Saavedra da papelaria, imaginem; todo armado em marialva, de calcinha esterlicada e jaqueta cingida! Dizem que está falido.
Um mundo de mentira, eu sei.
Negócio fácil e amizades fáctuas. Um cheiro a suor de cavalo com tudo o que pertence. Estrume e agua pé.
O polícia impedindo os carros de passar, raios o partam e:
- “Não há lugar nenhum, filha, o que é queres que eu faça?” …
Amo-te muito, meu Ribatejo de fulgor, tradição, chama.
E também contradições. Paciência.
Mesmo pintado de pretensão, vaidade e efémera cortesia.
Com cavalos a cada esquina do tempo.
Mas amo-te demais.
És a minha pele. Pertenço aqui.
Pedro Barroso
Voltar |