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Um manifesto revelador

21-03-2014 - Jorge Bateira

É um mérito do manifesto ter dito a verdade aos portugueses: não há futuro no presente quadro institucional europeu

O chamado manifesto dos 70, intitulado "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente", tem sido muito discutido. Ainda bem, porque imagino que era mesmo esse o seu objectivo central. Que os fiéis do pensamento único, do "não há alternativa" thatcheriano digam que o momento é inoportuno e que o documento contém "opiniões líricas e apresentadas de forma leviana", diz tudo sobre a qualidade da democracia que desejam para o país. A sociedade portuguesa não esquecerá quem se pôs do lado dos credores.

Há quem diga que a insustentabilidade da dívida pública não é óbvia e invoque as contas apresentadas pelo FMI, ou o facto de haver operadores privados que continuam a comprar dívida pública portuguesa a dez anos. São argumentos falsos. O irrealismo, ou mesmo a manipulação, dos pressupostos usados nas simulações do FMI, designadamente quanto às taxas de crescimento real do produto, à evolução dos preços na produção, ao crescimento da procura interna e ao excedente primário orçamental, foi muito bem escalpelizado por Ricardo Paes Mamede no Ladrões de Bicicletas ("Irrealismo ou barbárie").

De facto, para quem apenas vê folhas de cálculo, tudo é sustentável. Há um respeitável economista que diz não perceber porque é que elevados excedentes orçamentais primários não podem ser assumidos por muitos anos. Deve valorizar pouco o sofrimento que hoje esmaga muitos portugueses. Contudo, talvez consiga perceber se lhe lembrar o motim na armada britânica, em 1931, na sequência de uma brutal política de austeridade destinada a acalmar a finança internacional, o que implicou grandes cortes nos salários da função pública. Dias depois, a Grã-Bretanha abandonou o padrão-ouro e desvalorizou a moeda, logo começando a criar emprego. Estes economistas "sérios" têm grande dificuldade em perceber que a insustentabilidade da dívida pública e privada é uma matéria de escolha política, portanto, também de escolha moral, não é uma escolha técnica no quadro de uma restrição orçamental europeia inamovível.

Mesmo sendo insustentável, os operadores do mercado de capitais continuarão a comprar dívida portuguesa até ao dia em que perceberem que o BCE não vai poder comprar dívida pública sem limites. No dia em que, por razões de constitucionalidade alemã, os mercados não tiverem um comprador de último recurso, e esse dia vai chegar, ficará à vista o irrealismo do pressuposto do FMI sobre a taxa de juro. A menos que a actual maioria política alemã altere a Constituição para a tornar compatível com as intervenções do BCE, hipótese muito pouco provável, o que nos espera após a dita "saída limpa" é um teste dos mercados à capacidade de intervenção do BCE. Com a actual instabilidade financeira internacional, não me parece que tenhamos de esperar muito.

Há também quem sugira que a Alemanha e seus satélites já estão disponíveis para melhorar substancialmente as condições de juro e prazo, após as eleições europeias e um terceiro resgate à Grécia. É a conversa do costume sobre os amanhãs que cantam na zona euro. Infelizmente, desse espírito também enferma o manifesto ao dizer que uma nova Comissão Europeia vai desencadear um processo institucional que nos permitirá beneficiar de uma mutualização da dívida pública acima de 60% do produto. Toma o desejo pela realidade (ver Jörg Bibow, "Euro Delusion and Denial Keep Authorities Entranced").

Sendo o manifesto subscrito por europeístas de várias correntes ideológicas, a sua proposta assenta em dois pilares muito frágeis: (1) a viabilidade política da renegociação das dívidas na UE; (2) a capacidade de crescimento da economia portuguesa com os instrumentos de política de uma região autónoma, sob tutela do Tratado Orçamental. Ainda assim, é um mérito do manifesto ter dito a verdade aos portugueses: não há futuro no presente quadro institucional europeu. O PS já declarou que nunca porá em causa o statu quo e, por isso mesmo, já recebeu a bênção da chanceler Merkel. À esquerda, ainda não há alternativa credível.

Economista, co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas

 

 

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