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QUAL NAVIO DESENGONÇADO

12-05-2017 - Francisco Pereira

Segue aos solavancos pelo alcatrão poeirento e pejado de lixo do parque de estacionamento, parece uma traineira que vence, a muito custo, o mar revolto, cada passo uma onda, conheço-o bem, não sei a sua idade precisa mas tem mais de trinta anos talvez até quarenta, é um destroço.

A cada carro que pára, para estacionar, lá vai ele à pressa cercar o condutor, pede uma moeda, a cada transeunte faz o mesmo, está em desespero, vê-se que está em ressaca, coça-se muito, está descoordenado, arrasta os pés, o olhar é vago inexpressivo, para combater as dores que sente despeja uma garrafa de litro de cerveja, seguramente não come nada há muitas horas, está alcoolizado, fá-lo na tentativa, vã, de mitigar as cãibras que a ressaca provoca.

É horrível pensar que aquele homem, podia ser eu, podias ser tu que lês isto, ou aquele amigo ou amigo que conhecemos. Quantos de nós não perdemos já pessoas de quem gostávamos por causa de percursos de consumos aditivos. E é tão fácil, bastava ter fumado mais uma vez ou duas naquela festa, ou tomado, aqueles comprimidos naquele dia à noite, ou ter enrolado mais uma ganza, é tão fácil cair nesse poço de desumanidade que é o mundo das drogas, dos consumos excessivos ou da eterna bebedeira.

Continuo a seguir aquele pobre diabo, não terá feito ainda um mês que voltou a cair, tinha ido para uma desintoxicação, parecia bem, afinal voltou ao mesmo desespero, e que fácil é essa coisa de se estar sempre numa noite escura mesmo que o Sol brilhe em todo o seu esplendor, como é horrível deixar de conseguir controlar a nossa vontade, de nos sentirmo-nos uma marioneta, quem manda é a necessidade de consumir, nós somos uns tristes, uns dejectos patéticos que caímos cada vez mais fundo.

Agora quase que caía, está cada vez mais trôpego, desespera, não tem dinheiro, vejo que fala sozinho, vegeta ali no parque deambulando entre os carros, conheço aquela sensação de noite escura permanente, em que só sentimos um frio sinistro, em que a melhor companheira é a miséria, noites tenebrosas em que choramos e nos comparamos a dejectos, para com o clarear da aurora estarmos a pé, para irmos aos mesmos locais prosseguir a nossa degradação.

Pobre homem, nele revejo uma miragem que podia ser a minha própria imagem, sei bem o que sente, ira, revolta angústia e a malvada dor que não o larga, os olhares de escárnio e de desdém dos que o vêem, a indiferença e quantas vezes o ódio, no entanto sem conseguir compor a cabeça, nunca conseguirá sarar o corpo, as mais das vezes os consumos aditivos tem associados todo o tipo de distúrbios do foro psíquico, ora sabendo nós como este tipo de patologias é relegado para as traseiras do edifício, pois Portugal não tem nada que se pareça com uma verdadeira política de saúde pública para a área mental, fácil é perceber que se soçobra e a facilidade com que isso acontece.

Faz-nos falta a Humanidade que estamos a perder, demasiado ocupados que estamos a postar nas redes sociais ou a enviar mensagens pelo telemóvel, percepcionamos cada vez pior e de forma mais errada o outro, esquecemos que para sermos esse “outro” basta um passo mal dado, um erro de direcção ou uma escolha menos boa.

Francisco Pereira

 

 

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