A FAMILIA (6)
17-03-2017 - Henrique Pratas
O matrimónio por grupos, que, na Austrália, é também um matrimónio por classes, a união conjugal em massa de toda uma classe de homens, frequentemente dispersa pelo continente inteiro, com toda uma classe de mulheres não menos dispersa, esse matrimónio por grupos, visto de perto, não é tão monstruoso como o figura a fantasia dos filisteus, acostumados à sociedade da prostituição. Ao contrário, transcorreram muitos anos antes de que se viesse a suspeitar de sua existência, a qual, na verdade, foi posta de novo em dúvida só muito recentemente. Aos olhos do observador superficial, parece uma monogamia de vínculos bastante frouxos e, em alguns lugares, uma poligamia acompanhada de infidelidade ocasional. É necessário consagrar-lhe anos de estudo, como fizeram Fison e Howitt, para descobrir nessas relações conjugais (que, na prática, recordam muito bem à generalidade dos europeus os costumes de suas pátrias) a lei em virtude da qual o negro australiano, a milhares de quilómetros de seu lar, nem por isso deixa de encontrar, entre gente cuja linguagem não compreende — e amiúde em cada acampamento, em cada tribo — mulheres que se lhe entregam voluntariamente, sem resistência; lei por força da qual quem tem várias mulheres cede uma a seu hóspede para ele passar a noite. Ali, onde o europeu vê imoralidade e ausência de qualquer lei, reina, dei fato, uma lei rigorosa. As mulheres pertencem à classe conjugal do forasteiro e são, por conseguinte, suas esposas natas; a mesma lei moral que destina um a outro, proíbe, sob pena de infâmia, todo intercurso sexual fora das classes conjugais que se pertencem reciprocamente. Mesmo nos lugares onde se pratica o rapto das mulheres, que ocorre amiúde e em várias regiões é regra geral, a lei das classes é mantida escrupulosamente.
No rapto das mulheres, encontram-se, já, indícios da passagem à monogamia, pelo menos na forma de casamento sindiásmico; quando um jovem, com ajuda de seus amigos, rapta, à força ou pela sedução, uma jovem, ela é possuída por todos, um em seguida ao outro, mas depois passa a ser esposa do promotor do rapto. E, inversamente, se a mulher roubada foge da casa de seu marido e é recolhida por outro, torna-se esposa deste último, perdendo o primeiro suas prerrogativas. Ao lado e no seio do matrimónio por grupos, que, em geral, continua existindo, encontram-se, pois, relações exclusivistas, uniões por casais, a prazo mais ou menos longo, e também a poligamia; de maneira que também aqui o matrimónio por grupos vai se extinguindo, ficando o problema reduzido a saber-se quem, sob a influência europeia, desaparecerá primeiro da cena: o matrimónio por grupos ou os negros australianos que ainda o praticam.
O matrimónio por classes inteiras, tal como existe na Austrália, é, em todo caso, uma forma muito atrasada e muito primitiva do matrimónio por grupos, ao passo que a família punaluana constitui, pelo que nos é dado conhecer, o seu grau superior de desenvolvimento. O primeiro parece ser a foi uma correspondente ao estado social dos selvagens errantes; a segunda já pressupõe o estabelecimento fixo de comunidades comunistas e conduz diretamente ao grau imediatamente superior de desenvolvimento. Entre essas duas formas de matrimónio, encontraremos ainda, sem dúvida, graus intermediários; este é um terreno para pesquisas que apenas foi descoberto, e no qual somente se deram os primeiros passos.
3. A família sindiásmica. No regime de matrimónio por grupos, ou talvez antes, já se formavam uniões por pares, de duração mais ou menos longa; o homem tinha uma mulher principal (ainda não se pode dizer que fosse uma favorita) entre suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros. Esta circunstância contribuiu bastante para a confusão produzida na mente dos missionários, que veem no matrimónio por grupos ora uma comunidade promíscua das mulheres, ora um adultério arbitrário. À medida, porém, que evoluíam as géneses e iam-se fazendo mais numerosas as classes de "irmãos" e "irmãs", entre os quais agora era impossível o casamento, a união conjugal por pares, baseada no costume, foi-se consolidando. O impulso dado pela génese à proibição do matrimónio entre parentes consanguíneos levou as coisas ainda mais longe. Assim, vemos que entre os iroqueses e entre a maior parte dos índios da fase inferior da barbárie, está proibido o matrimónio entre todos os parentes reconhecidos pelo seu sistema, no qual há algumas centenas de parentescos diferentes. Com esta crescente complicação das proibições de casamento, tornaram-se cada vez mais impossíveis as uniões por grupos, que foram substituídas pela família sindiásmica. Neste estágio, um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas económicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das mulheres, enquanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas cruelmente castigado. O vínculo conjugal, todavia, dissolve-se com facilidade por uma ou por outra parte, e depois, como antes, os filhos pertencem exclusivamente à mãe. Nessa exclusão, cada vez maior, que afeta os parentes consanguíneos do laço conjugal, a seleção natural continua a produzir seus efeitos. Segundo Morgan, "o matrimónio entre genes não consanguíneos engendra uma raça mais forte, tanto física como mentalmente; mesclavam-se duas tribos adiantadas, e os novos crânios e cérebros cresciam naturalmente até que compreendiam as capacidades de ambas as tribos".
As tribos que haviam adotado o regime das géneses estavam chamadas, pois, a predominar sobre as mais atrasadas, ou a arrastá-las com seu exemplo.
A evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto, consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que originariamente abarcava a tribo inteira. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes e, por fim, até das pessoas vinculadas apenas por aliança, torna impossível na prática qualquer matrimónio por grupos; como último capítulo, não fica senão o casal, unido por vínculos ainda frágeis — essa molécula com cuja dissociação acaba o matrimónio em geral. Isso prova quão pouco tem a ver a origem da monogamia com o amor sexual individual, na atual aceção da palavra. Prova-o ainda melhor a prática de todos os povos que se acham nesta fase de seu desenvolvimento. Enquanto nas anteriores formas de família os homens nunca passavam por dificuldades para encontrar mulheres, e tinham até mais do que precisavam, agora as mulheres escasseavam e era necessário procurá-las. Por isso começam, com o matrimónio sindiásmico, o rapto e a compra das mulheres, sintomas bastante difundidos, mas nada além de sintomas de uma transformação muito mais profunda que se havia efetuado. Mac Lennan, esse escocês pedante, transformou, por arte de sua fantasia, tais sintomas, que não passam de simples métodos de adquirir mulheres, em diferentes classes de famílias, sob a forma de "matrimónio por rapto", e "matrimónio por compra". Além do mais, entre os índios da América e em outras tribos (no mesmo estágio), o arranjo de um matrimónio não concerne aos interessados, aos quais muitas vezes nem se consulta, e sim a suas mães. Comumente, desse modo, ficam comprometidos dois seres que nem sequer se conhecem e de cujo casamento só ficam sabendo quando chega o momento do enlace. Antes do casamento, o noivo dá presentes aos parentes gentílicos da noiva (quer dizer: aos parentes desta por parte de mãe, excluídos os parentes por parte de pai e o próprio pai) e esses presentes são considerados como o preço pelo qual o homem compra a jovem núbil que lhe cedem. O matrimónio é dissolúvel à vontade de cada um dos cônjuges. Em numerosas tribos, contudo, como, por exemplo, entre os iroqueses, formou-se, pouco a pouco, uma opinião pública hostil a essas separações; em caso de disputas entre os cônjuges, intervinham os parentes gentílicos de cada parte e só se esta mediação não surtisse efeito é que se levava a cabo o rompimento, permanecendo o filho com a mulher e ficando cada uma das partes livre para casar novamente.
Artigo Parte 6 
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