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Hortas Urbanas

11-03-2016 - Henrique Pratas

Devem estar recordados de há uns anos atrás um vereador do Município de Lisboa, iniciou a “promoção” da reabilitação das hortas nos terrenos baldios existentes onde moram pessoas com escassos recursos financeiros e ainda com o intuito de desenvolver uma actividade de subsistência, através do cultivo desses campos votados ao abandono e concomitantemente a cidade não ficava com estes terrenos desprezados.

Ao andar por uma parte da cidade de Lisboa, Marvila, a cada passo tropeça-se no passado agrícola daquele território. O verde das encostas é de perder de vista, em contraste com o cinzento do cimento dos bairros que se impõe no topo dos planaltos. A Câmara de Lisboa está a modernizar as hortas da freguesia. Pelo caminho ficarão alguns dos que dali tiraram durante décadas parte do sustento.

O barulho de um rolo de compressor é quase ensurdecedor. O senhor Manuel pára a volta a pé que ali faz quase todas as manhãs, e dá uma vista de olhos no compressor que está a planar o terreno.

Lá em baixo no Vale Fundão, já quase na extremidade norte de Marvila, vêem-se as máquinas a arrasar o que antes era a hortinha de onde lhe saíam as batatas, as nabiças, as cebolas, os alhos e as alfaces.

As hortas marcam a paisagem da freguesia, e a autarquia tem nos últimos anos operado uma revolução naqueles talhões de terra, de onde sobretudo os mais velhos tiram um complemento ao reduzido rendimento.

No designado Corredor Oriental, ou mais conhecido por Corredor das Hortas, e que se estende desde o Vale Vistoso (que começa nas Olaias) até ao Tejo, são mais de 66 hectares (66 campos de futebol) que estão a mudar.

No Vale Fundão, até ao fim do ano, irão nascer novos locais de cultivo, com mais condições, mais qualidade, autênticas “hortas 2.0”. Esta visão, que vos acabei de escrever é a nossa já para o senhor Manuel, octogenário foi a morte de um tempo.

Do alto dos seus 82 anos, Manuel vive no bairro mesmo por cima do parque urbano que ali se estende por vários hectares. Foi realojado ali desde a demolição do Bairro Chinês onde habitava.

Apesar de a barraca ter ficado para trás, outro passado não, o da agricultura, que trouxe dos tempos de menino na província, estava a ser-lhe dada a possibilidade de voltar a sentir o cheiro da terra e trabalhá-la.

Apanhou perto de si uns 150 metros quadrados e começou a tirar da terra o que a “miséria” das pensões, que ele e a mulher recebem, não dá. “Cento e tal contos (cerca de 500 euros) por mês”, deita ele cá para fora.

Naquele espaço de cultivo fez tudo na base dos princípios de infância que lhe estavam arreigados, tirou o suficiente para pôr as hortaliças à mesa.

A rega, era feita com bidões de 20 litros que se enchiam com a chuva do Inverno e a terra era cavada com instrumentos impróprios para o efeito, era cavada com aquilo que apanhava a jeito.

Mas, tudo tem um tempo e as oito décadas em cima do “cadáver” fizeram com que o corpo ganhasse dores que o campo não aceita. “O ano de 2015 já foi bera para mim”, diz o senhor Manuel.

A intervenção do Município de Lisboa nos dois hectares, que se estendem desde a piscina municipal de Marvila até ao parque do Vale Fundão, acelerou o processo de abandono daquele local, pelo senhor Manuel.

Este idoso vai abdicar do espaço que lhe seria atribuído e dá-lo-á a um vizinho que, apesar de ser “alfacinha”, é “danado para cavar”. Produz esta afirmação com a malícia de quem não acreditava que as duas coisas fossem compatíveis. O amigo ficará com o pedaço de terra do senhor Manuel, mas ele sempre poderá “tirar” de lá alguma coisa.

Questionado se a intervenção camarária chega em boa altura, o senhor Manuel não tem certezas, todavia não deixa de ficar claro que teme que a segurança dos campos diminua. Antes já era fácil e existiam roubos, agora, “vai ser muito pior” e sai-lhe uma frase já nossa conhecida e que ouvimos aos nossos avós quando éramos novos: “Quem viver, vai ver coisas nunca vistas.”

Contas de somar, subtrair e multiplicar, ao descer os campos, onde as obras fluem a toda a velocidade, mesmo por baixo do viaduto que dá início à Avenida Marechal António Spínola, o arquitecto paisagístico António Alho lidera os trabalhos, é o director da Espaços Verdes, a empresa a quem a autarquia lisboeta concessionou a obra das hortas do Vale Fundão. Tem a “obra” na ponta da língua, mas desconhece o passado daqueles terrenos e das gentes que por ali passaram.

O senhor Manuel lá vai dizendo do alto da sua idade que: “O que tínhamos antes eram hortas desorganizadas com imenso lixo e plástico. Isto estava cheio de roseiras e de silvas à volta. Quem aqui tinha um espaço, punha cadeados nos portões das cercas, algumas pessoas até dormiam nos terrenos (em casas feitas de madeira e cartão que serviam de apoio, para guardar os instrumentos utilizados no cultivo das terras) ”.

A água para a rega dos campos vinha maioritariamente da piscina, os “agricultores’” tapavam o colector para que a água ficasse armazenada esta mistura era feita com uma quantidade de maus nutrientes.

O biológico não era, na verdade, lá muito “bio”, “as couves, por vezes, não iriam lá muito limpas. Dizemos que o que é natural e não leva adubos é que é bom, mas quando a rega está contaminada estamos também a contaminar os alimentos”, afirma ele com clareza.

O primeiro trabalho da equipa que liderou foi a retirada de, milhares de garrafões de cinco litros, demasiado lixo e arames, eram coisas que as pessoas iam colocando para se defenderem dos intrusos que iam roubar os legumes e outras coisas.

António, o arquitecto, faz algumas contas, racionais, entre o passado e o futuro, das 80 pessoas que ali tinham hortas – a maioria mora no Bairro do PRODAC –, ficam 46, resultado da redução da área de cultivo. Apesar disso, o arquitecto não deixa de introduzir uma variável, para tentar explicar a racionalidade da medida tomada e para justificar potenciais prejuízos causados por este trabalho tão pesado, muitos já eram idosos, e isto parecia que estava trabalhado, mas já não estava, o vereador (José Sá Fernandes) faz questão que os terrenos estejam cultivados.

As próximas parcelas somam-se. Os terrenos, antes baldios, vão passar a custar entre 60 a 80 euros por ano – o valor da renda varia consoante o tamanho do terreno (desde os 80 aos 150 metros quadrados). O responsável de obra volta a amenizar o resultado com qualificativos à adição.

Dentro deste valor, está incluído, o acesso à água no local. É uma maravilha, afirma em forma de reivindicação. Os valores praticados não pagam um décimo do investimento que vai ser feito, mas quem passar aqui na ponte vai poder ver uma coisa com esmero e preocupação.

Quando o tema da receptividade de quem ali estava salta para a conversa, António multiplica primeiro a melhoria entre o antes e o depois, e diz com convicção, vai ficar cem vezes melhor, mas logo a seguir retira o “estrume e o lixo”, de que ninguém gosta, e adiciona-lhe mais a limpeza, os novos caminhos e as casinhas de apoio que serão as novas imagens de marca. Com estas condições o resultado final só pode ser afirma o arquitecto só pode ter uma boa aceitação e eu acrescento vamos ver como diria o cego.

Contudo, estas contas do arquitecto saem furadas uns passos à frente, variável humana faz das suas. Vamos encontrar o senhor José Maria que está às voltas na terra, fá-lo todas as manhãs, este é o seu entretém, já lhe arrasaram um dos terrenos que possuía, mas o amor que demonstra por aquele talhão, leva a que se pense que não serão os novos valores das rendas que vão tirá-lo dali, nada de mais errado acrescento eu.

Para expor a sua ideia começa a conversa afirmando: vou ser sincero, não é por causa dos 60 ou 70 euros, as casas de apoio para as ferramentas são para quatro ou cinco pessoas, não sei qual é o vizinho que teria, pode ser boa pessoa, mas também pode não ser. Pois é isto mesmo quem é que vai ficar com a chave de acesso aos pertences de cada um que guardam nessas casinhas e se desaparecer alguma coisa quem terá a culpa. Está instalada a confusão escrevo eu, porque estas questões são muito básicas mas muito difíceis de resolver, porque em primeiro lugar é necessário criara as condições necessárias para que cada um acredite no outro e esta tarefa não é nada fácil, porque nós não temos uma cultura de partilha, somos individualistas. O senhor José Maria, com 69 anos, há 40 a plantar no Vale Fundão, não quer jogar quer à partida entrar nessa “combinação, prova disso é a sua afirmação produzida entre um sorriso de quem já viveu a vida, “nem em mim confio, quanto mais nos outros”.

Mas não vai lutar pela terra?, isto sempre compunha lá em casa as coisas, não era preciso ir tanto ao supermercado, todavia tinha a consciência do seu estado de ilegalidade naqueles terrenos, tanto é que afirma, sabia que um dia isto ia acabar, não é nada nosso, nem o que é meu é meu, quanto mais isto, produz esta afirmação com a resignação que a vida já se encarregou de lhe entranhar na sua mente, e termina para outros pode não ser, mas para nós é muito dinheiro.

Subimos um pouco mais, e a poucos metros de casa, encontramos o senhor Jorge Paiva, tinha acabado de chegar de uma consulta com a mulher, olha para os dois pedaços de terra que se estendem mesmo à sua frente e inicia os seu desabafo, “os trabalhos da autarquia ainda não chegaram ali, mas já estão cada vez mais perto, o barulho produzido pelas máquinas ouve-se com maior nitidez”.

Não sabe ainda se os seus pedaços de terras também irão desaparecer com o projecto da câmara, só sabe uma coisa os 80 euros anuais são incomportáveis.

A vida não dá para isso, é muito dinheiro e as nossas reformas são pequeninas (juntos não recebem mais de 500 e poucos euros), temos muitos medicamentos para comprar. Ele para o coração, a mulher para o peito, para o problema no rim e para o fígado, é um poder de dinheiro o que é que sobra questiona a mulher do senhor Jorge, Rosa, e isto não é nosso. Acrescenta que é uma grande ajuda para não ir tantas vezes ao supermercado, acrescentando que é diabética, dava-nos jeito estes bocadinhos de terra, mas não temos condições para pagar os valores que dizem o que é que vamos fazer? E volta a afirmar que a decisão não é sua, está nas mãos de outros e acrescenta, se não nos deixarem ficar com isto, temos de nos conformar, não podemos fazer nada, não é nosso, vamos ter de passar a comprar o que aqui plantávamos.

Querem maior objectividade, clareza de pensamento que esta, escrevi sobre pessoas que amanham o que não é deles mas vai sempre dando para viver um pouco melhor, ou menos mal escrevo eu, mas são pessoas que nada têm mas pela sua experiência de vida, têm que se resignar à sua sorte com me disseram.

Acabo com dúvidas imensas para as quais não tenho resposta o projecto idealizado pelo Município de Lisboa, não poderia ter sido equacionado de outra forma envolvendo as pessoas que tratavam daqueles terrenos que sabiam que não eram deles mas trataram-nos como sendo seus e com isso as lixeiras que proliferam nos terrenos baldios tinham outro aspecto, será que alguém pensou nisto, será que o projecto vai ter o sucesso desejado?

Henrique Pratas

 

 

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