Referendos…
24-01-2014 - Humberto Neves
O sistema político português assenta no sufrágio directo, universal e secreto, pelo qual os cidadãos eleitores escolhem os seus representantes para a Assembleia da República que tem, como principais competências, a produção de legislação e a fiscalização à acção do Governo.
Mas, se por um lado, o nosso sistema político permite que os cidadãos escolham os seus representantes e estes decidam por aqueles (democracia indirecta), por outro também permite que os cidadãos decidam, directamente, sobre «questões de relevante interesse nacional». O referendo é, pois, um instrumento de democracia directa, pelo qual cidadãos eleitores são chamados a pronunciar-se, por sufrágio directo e secreto, sobre questões que órgãos do poder político pretendam resolver mediante acto normativo[1] e foi instituído na ordem jurídico-constitucional portuguesa através da revisão constitucional de 1989. Desde então, realizaram-se apenas três consultas populares: sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (28-06-1998 e 11-02-2007) e sobre a criação de regiões administrativas (08-11-1998). Em todos eles, a participação dos eleitores foi bastante reduzida, com taxas de abstenção superiores a 50%, o que significou que os mesmos não tiveram efeito vinculativo.
Dos três referendos que já se realizaram , apenas um, na minha opinião, versava sobre uma questão de relevante interesse nacional[2]: o da criação das regiões administrativas. Porque a criação de órgãos de governação intermédios alterava, significativamente, a relação existente, até então, entre os cidadãos e o Estado. Pelo contrário, os referendos sobre a interrupção voluntária de gravidez (no primeiro, venceu o “não”) incidiam sobre uma questão de consciência individual e como tal, os deputados com assento na Assembleia da República deveriam ter tido a coragem de assumir as responsabilidades decorrentes do exercício das suas funções e legislado sobre a matéria. Sem disciplina de voto!
O referendo agora proposto pelos deputados da JSD e aprovado com os votos favoráveis do PSD é mais um exemplo dum assunto meramente da consciência pessoal de cada um. Se os deputados assumiram as suas responsabilidades e tinham já aprovado a proposta de lei relativa à co-adopção, não faz qualquer sentido que o assunto seja submetido a consulta popular. O aqui que está em causa é apenas uma questão de bom-senso. O que aqui está em causa é o bem-estar das crianças. Como escrevia esta semana João Miguel Tavares no “Público”: «acho apenas justo, obviamente justo, escandalosamente justo, que uma criança que é criada por um casal homossexual, e que, em termos legais, só está juridicamente vinculada ao progenitor biológico, possa ver essa protecção alargada ao outro membro do casal, de forma a permanecer na família e manter as suas relações afectivas se acaso o pai ou a mãe biológica lhe faltarem.».
Os resultados dos referendos realizados em Portugal nunca foram vinculativos. Os eleitores estão cada vez mais desligados da política e dos seus actores, pelo que é de esperar que, a realizar-se um referendo (mesmo que seja em simultâneo com as eleições para o Parlamento Europeu), os níveis de participação sejam bastante diminutos. Por outro lado, a realização dum referendo acarreta custos que, no contexto de crise e austeridade em que vivemos, nunca serão entendidos por aqueles a quem são pedidos sacrifícios. Espero que o Presidente da República, que é quem tem a última palavra no que à convocação (ou não) do referendo diz respeito, opte por não levar adiante esta decisão da Assembleia da República. Os portugueses devem concentrar os seus esforços em assuntos bem mais importantes para o futuro colectivo deste país!
[1] Referendo, in http://www.cne.pt/content/referendo
[2] Outro assunto de relevante interesse nacional seria a realização dum referendo europeu. Aliás, a última revisão constitucional datada de 2005 apenas foi realizada para que tal fosse permitido, com a inclusão, na CRP, do artigo 295º (Referendo sobre tratado europeu): «O disposto no nº 3 do artigo 115º não prejudica a possibilidade de convocação e de efectivação de referendo sobre a aprovação de tratado que vise a construção e aprofundamento da união europeia.»
Humberto Neves
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