Isto é muito a sério, mas é só um começo
21-08-2015 - Francisco Louçã
Nacionalizar a grande indústria e recuperar bens públicos, incluindo os caminhos de ferro, o gás e a electricidade, aumentar a progressividade dos impostos, investir para criar emprego, reconstruir o serviço nacional de saúde, abolir as propinas nas universidades, sair da NATO e recusar as aventuras belicistas, terminar com a opção nuclear das forças armadas britânicas. É o programa de Jeremy Corbyn, que é hoje o candidato mais bem colocado para ganhar a liderança dos trabalhistas britânicos (eleições em setembro).
A explicação para esta ameaça de um terramoto político dentro da social-democracia britânica parece fácil de entender. Primeiro veio Tony Blair, que conduziu o partido trabalhista aos crimes de guerra no Afeganistão e no Iraque, promoveu as parcerias público-privado, atacou os serviços públicos e afirmou o liberalismo como o dogma económico e financeiro para todo o sempre. A City reforçou-se e os conservadores voltaram tranquilamente ao poder. Depois, o partido trabalhista continuou a mesma política com os sucessores de Blair, de Brown a Miliband, mesmo que este tivesse prometido uma nova orientação, frustrando os seus apoiantes.
Ao longo de vinte anos, a doutrina da terceira via, segundo a qual as eleições se ganham ao centro com uma política de centro, conduziu à vitória monumental da direita. Por isso, muitos militantes trabalhistas querem romper com este passado e Corbyn aparece como o homem para o fazer.
Os cínicos argumentam que Blair tem mesmo razão e que, se o partido virar à esquerda, a direita se eternizará no poder. Vai ser refrão em Portugal e em toda a Europa, assustada com esta surpresa. Portanto, a ideia é que tudo deve continuar na mesma, com o centro a aceitar que a direita determine a única política admissível. Esta solução é a da eternidade da ordem liberal.
De facto, os partidos socialistas submeteram-se a tal razão cínica. Não é essa a história de Hollande? Eleito com promessas gloriosas (fazer frente a Merkel! em poucas semanas renegoceio o Tratado Orçamental e acrescento um plano para o emprego!), alinhou-se no consenso europeu e assim ficou. O mesmo se dirá de Renzi (que já enfrentou uma greve geral contra a mudança da lei laboral), o mesmo se dirá de Seguro e de Costa (para quem não há vida para além do Tratado Orçamental e dos comunicados do Eurogrupo) e de todos os outros.
A Inglaterra tem no entanto duas diferenças assinaláveis em relação a França, ou Itália, ou Portugal. A primeira é que o partido trabalhista tem uma história organicamente ligado ao movimento sindical, o que explica que ainda tenha havido gente e convicção para esta aspiração a uma viragem anti-blairista e anti-liberal. A segunda é que o país não está submetido nem ao euro nem às regras do BCE e tem assim margem de manobra para políticas próprias, o que permite um debate político mais aberto sobre alternativas realizáveis. A Corbymania que tanto incomoda o establishment resulta dessas duas potencialidades.
Deve ser levada a sério. É mesmo uma ameaça, porque é mais uma expressão de como os sistemas políticos subjugados às ideias liberais e à austeridade tendem a acumular tensões, que em alguns casos começam a explodir: assim começou na Grécia, continuou em Espanha e chega a Inglaterra. Mas como todos os exemplos mostram, é preciso muito mais do que um homem honesto, que abomina Blair e os seus crimes e que quer ser verdadeiro com a sua gente: é preciso ter a capacidade, o programa e a relação de forças para criar um poder que enfrente o poder. E isso não se consegue a partir de um partido mergulhado na renúncia e nos interesses. A divisão do partido trabalhista pela sua direita parece então ser o destino de uma hipotética vitória de Corbyn. Ainda bem, não há nada que substitua a clareza de propostas políticas para um país e o seu povo.
Para a comparação com Portugal há pelo menos três conclusões evidentes. A primeira é que não há hoje no PS, nem houve nunca nos últimos trinta anos ninguém que defenda um programa que se assemelhe ao do Corbyn, nem sequer parcialmente. Ninguém, nem um assomo. Os chefes dos sindicalistas do PS, diga-se, costumam ser a parte do partido mais próxima do PSD. A segunda é que um programa semelhante só é defendido à esquerda e não ao centro. Mas as esquerdas, que se aproximam desta energia contra a razão cínica, não adoptam políticas unitárias que criem um referencial e preferem a política de quintal. A terceira é que os partidos de esquerda que em Portugal defendem o apoio ao centro e portanto sentem a necessidade de desgraduar o seu próprio programa estão hoje à direita de Corbyn (lembram-se das explicações para a continuação de Portugal na NATO?).
O que em todo o caso fica demonstrado é que o mundo gira e avança.
Francisco Louçã
(no blog tudomenoseconomia, no jornal Público online)
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