Memórias (16)
10-04-2015 - Henrique Pratas
O ano lectivo seguinte e culminou no términus do Curso Comercial, o que aprendi até então dava-me competências e instrumentos para poder exercer uma actividade profissional ligada a diferentes actividades desde a Bancária, passando pelas Alfandegas, Bolsas de Mercadorias e Capitais e muitas outras empresas “queriam” os melhores alunos no final do Curso, não foi por acaso que o Alfredo da Silva, quando possuía o seu parque industrial no Barreiro, construiu a Escola Comercial Alfredo da Silva, a maior parte dos seus colaboradores ao nível administrativo eram oriundos da “sua” escola era a principal fonte de recrutamento.
Fiquei contente e prometi com o que tinha dito aos meus pais, tinha perdido um ano lectivo mas tal não voltaria a acontecer e assim foi. Terminado o Curso Comercial e como queria ir para Económicas, tinha que fazer a Secção Preparatória, mais dois anos para depois aceder ao Instituto Superior de Contabilidade e fazer mais dois anos e a admissão à Faculdade, ou em alternativa ter média de 16 valores às nucleares, Matemática, Geografia e Português e entrar directamente sem passar pela casa de partida.
A minha vontade em estudar era muita, avaliei a situação com os meus pais e recebi luz verde para avançar, o que deixou contentíssimo, para além disso e estaríamos para aí nos anos de 1970, o meu pai decidiu dar-me um relógio que até hoje guardo religiosamente e que foi nem mais nem menos que uma edição da Omega do relógio que tinha ido à Lua, Speadmaster, recordo-me de quanto custou na altura foram 4.900$00, o meu pai não podia ir comprar o relógio sozinho, porque a bracelete era em metal e era afinada em função do tamanho do pulso do seu utilizador, foi assim que descobri o seu custo. Pensei que o meu pai tinha enlouquecido mas se ele me fez esta oferta que aliás não foi só dele foi da minha mãe também era porque podiam fazer.
Para além disso e na sequência da obtenção do passaporte, foi-me oferecida uma viagem a Paris, onde fui conheci muita coisa ao vivo e a cores que a maior parte de nós só pode ver nos livros, andei dias no Louvre, noites no Moulin Rouge e na praça Pigalle, conheci todos os locais que os escritores franceses faziam alusão nos seus livros, que eu já tinha lido, assistia à eficiência com que os pintores nos locais mais inóspitos efectuavam as suas pinturas, para puderem sobreviver.
De volta a Portugal senti que tinha entrado num outro País que não o nosso escuro, apagado, cinzento, senti uma tristeza muito grande dentro de mim tinha vindo da cidade das luzes e de um País iluminado para a escuridão o choque foi grande mas refiz-me rapidamente, mas não deixei de sentir a diferença.
Nesse ano antes de a escola começar decide arranjar um emprego para ganhar uns cobres, foi mais um contacto que tive com o oportunismo que existia ao tempo na nossa sociedade, fui trabalhar para uma empresa que tinha como objectivo, fazer chegar aos VIPs as noticias ou fotografias onde os seus nomes apareciam, era preciso estar atento a todos os jornais e revistas, poucas que existiam na altura e recortar tudo o que se referisse às pessoas da “importantes” da nossa sociedade. Não sabia ao que ia, apenas queria ganhar uns dinheiros, como não sou de fazer perguntas, explicaram-me na generalidade o que era e eu lá fui, importa aqui recordar que as noticias eram posteriormente coladas em postais do correio e posteriormente enviados para os destinatários, que figuravam nas notícias a troco de uma avença que tinham com essa empresa.
Bem os primeiros dias correram normalmente, mas como gosto de observar onde estava metido vi logo que tinha metido o pé na argola em ter aceitado aquele tipo de trabalho, não tinha nada a ver com aquilo e assim que vi o que era, comecei a pensar como é que me podia livrar, tanto mais que me tinham dito que pagavam à semana e passadas duas semanas de lá estar pagamento nada e pensei para comigo isto está bom está.
Como já vos disse anteriormente os artigos recortados dos jornais ou das revistas eram colados num postal dos correios e na frente do postal dactilografa-se o nome e o endereço do cliente, o que é que me lembrei comecei a enviar postais com notícias para pessoas que não tinham nada a ver com os conteúdos que seguiam coladas nas costas de imediato as reclamações começaram a surgir e instalou-se o caos, ficou tudo doido e eu que na altura estava muito consciente do que tinha feito, deu-me um gozo enorme o pior é que a empresa tinha um PIDE instalado para verificar que tipo de noticias que saiam e para onde iam e se havia alguma que não podia sair. Obviamente que os donos da empresa estavam ligados à sociedade proeminente à época, quando soube as consequências disso mais gozo me deu e a quantidade que telefonemas que choveram a reclamar foram mais do que muitos. Os donos vieram falar comigo e eu de boa-fé disse-lhes se tinha havido enganos podia não ter sido só eu pois antes de saírem para as ruas os postais passavam por tantas mãos e às vezes as colagens eram feitas por outras pessoas podiam ter sido mais pessoas a cometerem o erro, hoje escrevo-vos, não foram fui eu que baralhei aquela palermice toda, aquele serviço para mim não fazia sentido, não acrescentava valor nenhum, era apenas um meio de divulgação e de alimentar o ego de algumas pessoas que nadavam nas festas e nos eventos promovidos pelo Governo da altura e que a mim não me diziam respeito, nem entendia que devessem ser divulgados pois os trabalhadores a única coisa que tinham direito era trabalhar e mais nada, tomei conhecimento efectivo dos diferentes estratos sociais criados pelo regime e no meio de isto tudo existiam aqueles, como hoje, que viviam única e exclusivamente de expedientes, aí tive conhecimento de uma realidade que não era tão visível no dia-a-dia.
Esta minha atitude de irreverência levou-me mais uma vez à António Maria Cardoso e passar por lá mais 24 horas, queriam saber se eu tinha feito de propósito, se o tinha feito de forma inconsciente a mando de alguém ou por iniciativa própria e quais as minhas ligações a organizações políticas, estas 24 horas foram muito difíceis e não escrevo que foram as mais difíceis porque não sei o que o dia de amanhã me espera.
Durante o período de tempo que lá permaneci perguntaram-me tudo o que possas e não possam imaginar, para alcançar os objectivos e poder anunciar que tinham apanhado mais um comunista, mantive sempre a minha coerência de raciocínio e princípios que me norteavam, repetiram as mesmas perguntas vezes sem conta, estive o tempo todo de pé e não me permitiram que me sentasse no chão sequer havia que estar de pé firme e hirto, não podia vacilar, porque imediatamente com um chicote me recordavam as regras que tinha estabelecido previamente sem me perguntarem a opinião. Aguentei-me, como tinha que ser, apesar de me ter passado pela cabeça algumas vezes que não aguentava, mas não podia dar parte de fraco.
No dia seguinte ao amanhecer conheci o Silva Pais, que mandou sair os dois agentes e voltou-se para mim e perguntou-me: "Fez aquilo com que intenção, vá responda que eu já estou farto disto". Eu reduzido à minha insignificância voltei a repetir o que tinha dito durante o dia e a noite aos diferentes agentes, quando acabei de falar ele volta-se para mim e disse-me vai-te lá embora e espero não te voltar a ver por estas paragens, aí tive consciência que ele já possuía a informação de todos os agentes que falaram comigo e como a minha resposta bateu certo com o que ele já sabia mandou-me embora, nem sequer olhei para trás, dirigi-me à Brasileira e como tivesse medo que algum PIDE estivesse por ali, quando o Manuel da Fonseca me perguntou então rapaz o que é que te aconteceu, pisquei-lhe o olho e respondi-lhe nada, tomei um café comi um pastel de nata e fui para casa dos meus pais a pé desci o Chiado, a Rua do Carmo, passei pelo Rossio para a Praça da Figueira e encaminhei-me para a Avenida Almirante Reis que a subi a pé praticamente toda até meio e encaminhei-me para o Bairro das Colónias onde os meus pais viviam.
Experimentei diferentes sensações, a de liberdade, a de não vacilar perante o interrogatório a que fui sujeito, apesar de ter pensado várias vezes em desistir, mas não fui isso a que me tinha habituado e não era isso que queria, queria mostrar que era forte e consegui sei lá como, as práticas a que fui sujeito atormentaram-me durante vários dias mas a partir da presente data pensava eu tinha ficado preparado para outras coisas piores.
No dia seguinte dirigi-me à empresa onde tinha prestado serviços e não me pagaram e recebi como resposta que não tinha direito a receber nada porque reteram na sua posse o que eu tinha para receber para fazer face aos prejuízos que tinha causado, nem sequer respondi voltei costas e vim-me embora, antes que fizesses alguma coisa que não devesse, eu não tinha direitos nenhuns e os outros tinham os direitos todos, foi a grande conclusão que retirei e me apercebi que era assim a sociedade ao tempo os que tinham direito a tudo e os que a nada tinham direito, estava incluído nestes últimos sem ninguém me ter perguntado opinião, era assim e mais nada.
Lisboa, 06 de abril de 2015
Henrique Pratas
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