Memórias (15)
03-04-2015 - Henrique Pratas
Depois de mais umas férias de Verão e princípio de Outono no Arripiado, onde se aproveitava tudo o que havia, eram outros tempos as pessoas deixavam a porta de casa na tranqueta ou em alternativa com a chave metida na fechadura por fora, outros tempos em que o respeito imperava, evoluímos para pior, agora com tudo fechado, com grades e com outras precauções os assaltos abundam.
Para além do trabalho no campo tinha a oportunidade de ir nadar para o Tejo, coisa que nos dias de hoje não se pode fazer, muito a contragosto da minha avó pois todos os anos morriam soldados afogados. Atravessava o rio quatro vezes e quando chegava a Tancos subia a muralha e saltava para a água de cabeça para baixo e vá de nadar para o lado contrário, tinha um truque que era nadar junto às margens no sentido do Castelo de Almourol e como a corrente se fazia sentir no meio depois de nadar o suficiente na margem bastava acompanhar o movimento da corrente que nos levava para a margem a técnica era esta, naquele tempo atravessa o rio várias vezes por dia, hoje não me atrevo a meter os pés lá dentro, evolução da sociedade. Nesse tempo praticamente não ia a casa dos meus avós “acampávamos” nos areais que se formavam no Tejo com os meus primos e raramente íamos a casa tínhamos tudo à mão, para comer e quando não tínhamos fazíamos para que as coisas aparecessem, na altura as pessoas que nos viam acampados no Tejo, quando regressavam do trabalho agrícola e traziam produtos agrícolas partilhavam connosco e nós aceitávamos, porque senão o fizéssemos parecia mal às pessoas, elas gostavam de nós éramos uns miúdos bem-educados e falávamos com todos e isto era muito bem visto pelas pessoas.
Aproximava-se mais um ano lectivo, havia que regressar a Lisboa, para o inicio dos trabalhos, a escola nesse ano tinha que correr muito bem tal e qual como tinha prometido aos meus pais e correu, tinha aprendido a gerir o tempo e nesse ano não deixei as tertúlias mas quando apliquei um novo método que foi todo os dias estudar a matéria que os professores davam, fazia apontamentos e chegava a casa passava tudo a limpo para cadernos, era meio caminho andado para apreender a matéria, porque nunca fui apologista de estudar nas vésperas o estudo é um trabalho contínuo e culmina com uma avaliação dos conhecimentos adquiridos, adoptei este método para o resto da minha vida quer académica quer profissional e não me tenho dado mal, antes pelo contrário, sinto que em termos profissionais as pessoas ficam irritados com esta minha atitude pois quando se propõe fazer alguma coisa se não a tenho feita tenho-a pelo menos alinhavada na minha cabeça, não estou à espera do que possa vir a acontecer, vejo, analiso e projecto soluções para o futuro.
Nesse ano lectivo as notas escolares foram excelentes, pois não queria que os meus pais deixassem de acreditar em mim, esforcei-me é certo mas tinha-lhes feito essa promessa e quando prometo faço nem que caiam picaretas. Os resultados do 1.º e do 2.º período foram muito bons, podia ter desacelerado no 3.º mas promessa é promessa e apliquei-me até ao fim, os resultados que chegaram a casa não podiam ter sido melhores, os meus pais ficaram muito contentes e comentaram, quando ele quer faz. Como contrapartida deixaram-me ir um mês para Espanha, em conjunto com a rapaziada do costume juntámo-nos todos, cerca de 26 e vá de delinear o trajecto que pretendíamos percorrer e conhecer.
Mas primeiro era necessário obter o passaporte, o meu pai passou-me a declaração necessária para poder solicitar o passaporte, que entreguei no Governo Civil de Lisboa, mas o pior estava para vir, um belo dia recebo uma convocatória para me apresentar num edifício no Martin Moniz, por detrás da capela que ali existia ou existe, hoje não sei se existe é sitio que não frequento, subi ao primeiro andar, disse ao que ia, mandaram-me esperar, sentei-me e aguardei tempos que para mim foram infinitos e não me disseram o que queriam. Depois de uma hora ou mais de espera e de já estar perfeitamente desesperado, lá me chamaram para uma salinha onde havia uma secretária e duas cadeiras, um dos homens estava sentado na secretária o outro estava de pé entrei meio a medo, pois aquele ambiente não me era afável e não me enganei.
Mandaram-me sentar e a primeira pergunta que me fizeram foi para é que queria o passaporte, a pergunta para mim não fazia sentido, então o passaporte só servia para permitir que as pessoas pudessem viajar, hesitei na resposta pois ela era tão óbvia, que pensei logo que havia segundas intenções.
Respondi que pretendia o passaporte para poder viajar para fora do País e quando dei esta resposta entendi qual era a questão, queriam saber se pretendia o passaporte para fugir à tropa e consequentemente à guerra, sei que entrei lá de manhã, por volta das 10 horas e só saí às 17 horas e a pergunta andava sempre em torno do mesmo queres os passaporte para quê a minha resposta era sempre a mesma, mas como já tinha “cadastro” na Policia Politica, fui exprimido até ao tutano, foram horas nisto, já estava quase a perder a cabeça e a desistir de ter o passaporte, mas como não queria ceder fui arranjando forças para aguentar a pressão que foi exercida sobre mim durante horas a fio. Neste processo todo e como a minha resposta era sempre a mesma, a outra questão foi passear para quê falta-te aqui em Portugal alguma coisa que não tenhas, aí respondi-lhes que as coisas deviam ser vistas ao vivo e a cores.
Saíram da sala e deixaram-me ficar sozinho durante algum tempo com a porta fechada, que para mim foi uma eternidade, já estava cheio deste processo, eu até já prescindia do passaporte, mas já que tinha aguentado até ali, tinha que ir até ao fim deste processo.
Quando voltar a entrar, a primeira pergunta foi a mesma e eu vá de responder a mesma coisa, mas já estava farto, até que veio a pergunta/afirmação onde queriam chegar queres o passaporte para poderes fugires ao cumprimento do serviço militar obrigatório, mais uma vez lhes respondi que não que apenas queria ir viajar conhecer outras paragens e que ainda era muito novo para pensar no serviço militar pois pensava fazer a minha licenciatura em Portugal e que não me queria separar da minha família. Face à minha resposta riram-se desalmadamente e gozaram-me, dizendo se achava que tinha inteligência para os enganar. Recordo-me apenas de lhes ter dito que a minha resposta era a verdadeira razão para que queria passar o passaporte, já em desespero de causa. Voltaram a sair.
Passado mais uma hora de estar a secar e de já fazer contas à minha vida e interrogado porque é que me tinha metido naquilo e farto de estar fechado numa sala minúscula, voltaram a entrar as duas personagens e a primeira pergunta foi a mesma de sempre, já me dava vómitos, mas lá respondi como das outras vezes, fizeram-me mais umas perguntas à volta da mesma temática, para ver se eu entrava em contradição, mas tal não aconteceu respondi de forma coerente e consistente. Voltaram a sair e eu já pensava mal da minha vida, passados uns instantes entraram e disseram-me podes ir-te embora e podes ir buscar o passaporte ao Governo Civil passados três dias, não me recordo se dei as boas tardes ou não, mas assim que ouvi que podia sair levantei-me de imediato e há palhetas pernas para que te quero. Assim que cheguei à rua parecia que estava tonto, voltei de novo a respirar ar fresco, parei no passeio e revi de novo o “filme” em que tinha participado a ver se alguma coisa fazia sentido, por mais que pensasse e analisasse nada daquilo me fazia sentido, senti-me humilhado, mas fiquei a conhecer melhor as práticas “pidescas”, depois de aclarar as minhas ideias e de pensar no rumo que deveria tomar e dado que estava no Martin Moniz, subi a pé lentamente a Almirante Reis, olhando para as pessoas e montras com outro olhar, nada do que tinha acabado de acontecer fazia sentido, sujeitar um rapaz de 16 anos àquela “sessão”, para quê, com que objectivo?
A partir daí a minha indignação e revolta contra aquelas práticas aumentaram significativamente e por outro lado tomei sempre as devidas precauções para que não se repetissem.
Chegado a casa os meus pais esperavam por mim, sabiam onde tinha ido, perguntaram-me apenas e então, a minha cara dizia tudo e o meu pai conhecia bem o que se tinha passado comigo, vou buscar o passaporte daqui a três dias, sentei-me à mesa jantei não abri a boca e fui-me deitar, apetecia-me desaparecer deste País de uma vez por todas, então um cidadão já não podia viajar, sem que fosse sujeito a uma humilhação.
Somando aos outros episódios porque já tinha passado o regime ganhou mais um “amigo”.
Lisboa, 30 de março de 2015
Henrique Pratas
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