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Memórias (14)

27-03-2015 - Henrique Pratas

O início escolar deu-se em outubro com o era habitual e conforme já escrevia entrei para a Escola Comercial Veiga Beirão, na altura era o 1.º ano do Curso Comercial hoje seria o 7.º ano de escolaridade, a Escola ficava sitiada no Largo do Carmo e este meu primeiro ano foi para esquecer em termos de aproveitamento escolar.

O “salto” foi muito grande passei do ciclo para uma área em que o tempo escolar era das 8 horas da manhã até às 17 horas, as disciplinas eram muitas e eu estava numa idade em que queria conhecer as coisas, não foi fácil gerir as coisas tinha apenas 14-15 anos, altura em que estamos dispostos a tudo para aprender.

Para começar comecei a frequentar a Brasileira no Chiado, lá conheci muitas pessoas entre eles o Manuel da Fonseca, o Cargaleiro, o Cutileiro, o José Gomes Ferreira,o José Cardoso Pires, o Luis de Sttau Monteiro, o Branquinho da Fonseca e muitas pessoas mais que não vou citar, porque me poderei esquecer dos nomes, mas muita gente ligada à escrita e às belas artes dado que a faculdade de Belas Artes era perto e a tertúlia ou “manada” como quiserem juntava-se e as conversas eram mais do que muitas, gostei particularmente de conhecer o Manuel da Fonseca, aprendi muito com ele, mais uma vez tive o privilégio de me deixarem entrar no grupo, numa primeira fase absorvia tudo o que diziam, calado não manifestava a minha opinião até que um dia o Manuel da Fonseca com o seu ar de bonomia se volta para mim e diz-me ”já vai sendo altura de ouvirmos a tua opinião”, era o que esperava, a partir daí tiveram que me aturar não me calava e sempre que não entendia alguma coisa pedia que me explicassem e sempre que tinha opinião sobre a matéria que se discutia, emitia a minha opinião sempre com o receio de não ser bem acolhido mas estava entre pessoas que sabiam ouvir e que não me faziam correcções de imediato, deixavam passar e numa outra conversa de uma forma subliminar e correcta transmitiam-me a sua mensagem, na altura era preciso ter muito cuidado com as conversas porque os PIDES estavam por perto, a António Maria Cardoso, ficava ali bem perto.

Ora eu acabadinho de chegar à escola, cai numa turma de repetentes, muito mais velhos do que eu, uns corécios da pior espécie, foi mais um tirocínio que tive que fazer, não estava habituado àquela movimentação toda ao inicio era eles que mandavam e a minha vida não foi fácil ao inicio, mas tinha que me aguentar com a sorte que me tinha caído em sorte e tentar “sobreviver”.

Fiz pela vida, no primeiro dia de aulas fui logo ao banho, na escola existia um bebedouro de água rectangular e os mais velhos vá de pegar em mim e deitar-me dentro do bebedouro, não me fez mal nenhum, fiquei apenas molhado, mas não foi por isso que não deixei de ir às aulas todas. Nesse ano lectivo, conheci personagens como o professor de Geografia, que quando estávamos a falar sem nos dizer nada atirava-nos o ponteiro para cima e apanhávamo-nos onde calhava. Tinha-mos uma professora de francês que era uma minorcas mas que era velhaca como tudo, então aí o gozo era total, um dizia uma coisa, outro dizia outra sem que ela se apercebesse, mas fazendo-se notar, até que conseguíamos por a mulher completamente doida e eramos convidados a sair da sala de aulas, paulatinamente até que a população residente fosse mínima ou em algumas situações, não tão poucas como isso nula, tudo para a rua porque ninguém denunciava ninguém. A caligrafia tínhamos um professor que dormia durante as aulas utilizando como objecto de “camuflagem” o Diário de Noticias”, que abria e onde estrategicamente fazia uns furos para de vez em quando nos poder espreitar. Um dia nós fartos desta tramóia fomos ao Cais das Colunas e apanhámos uns caranguejos que metemos em sacos de plásticos e levámos para a sala de aulas de Caligrafia, os caranguejos que conseguimos apanhar foram muitos e vá de molhar as patinhas dos bichos, nos tinteiros e largá-los pela sala de aulas, não bastaram 30 minutos e estava tudo sujo com tinta, paredes, chão tudo. Assim que o professor, que era também o vice-director se apercebeu da gracinha, fomos todos postos na rua, com a promessa de sermos expulsos da Escola. O caso esteve mal parado, mas como tínhamos um Director da Escola era uma pessoa à séria levámos uma reprimenda e ficámos por ali.

Para ficarem a saber como era tão defensor dos alunos aquele director, vou-lhes contar o que fazia-mos nos urinóis públicos que existiam ao tempo no Largo do Carmo, onde coexistia o quartel da Guarda Republicana.

Preparávamos um discurso, arranjámos uma fita a condizer com a cerimónia, uma tesoura e semana sim semana não procedíamos à inauguração dos urinóis já existentes, o discurso era lido por um de nós que se punha em cima de uma parte mais elevada e à semelhança do que faziam os Ministros do então Governo, discursávamos para os nossos companheiros que já tinham colocado a fita para que no final do discurso, quando este conseguia ser dito até ao fim sem a intervenção da GNR, um de nós que estava munido de uma tesoura procedesse ao corte da fita e assim estavam inaugurados ao público os urinóis. Este acto de rebeldia trazia-nos sempre dissabores porque gozávamos com os GNRs que estavam a fazer a guarda à entrada nas instalações, porque sabíamos que estes não podiam abandonar o seu posto o que faziam era tocar uma campainha a chamar os outros GNRs que estavam dentro do Quartel do Carmo, mas isso dava-nos tempo para pelo menos discursar como os Ministros à época, às vezes a inauguração já não se fazia porque tínhamos que fugir para dentro da Escola, porque aí estávamos a salvo os GNRs não podiam lá entrar, porque o Director da Escola não consentia que eles entrassem, para nos prenderem, esta cena repita-se vezes sem conta e alguns de nós ainda levava algumas cacetadas no lombo mas prenderem-nos é que nunca o conseguiram fazer.

Um belo dia tememos o pior porque ao final das aulas tínhamos um pelotão de GNRs à porta da Escola, nesse dia ficámos na Escola até tarde, mais tarde viemos a saber que tinham recebido instruções do Ministro da Educação para nos prender, mas o Director ficou connosco na Escola, muitos de nós arriscámos sair pelas traseiras que eram altas e de difícil transposição, mas arriscámos e conseguimos sair para a Rua do Carmo, mas como não abandonávamos os nosso companheiros, voltávamos para a Calçada do Sacramento, para provocar os GNRs, para ver se estes vinham atrás de nós e assim os que estavam retidos lá dentro conseguiam sair e assim foi aos poucos e poucos lá conseguimos com quer todos saíssem e quando nos apercebemos que já tinham saído todos, fomo-nos por em frente aos GNRs, à distância devida, a gozar com eles, quando carregavam sobre nós vá de corrermos para as quatro saídas que tínhamos e assim eles não sabiam para onde ir, escrevo-vos que levámos algumas “vergastadas”, mas a atitude dos GNRs e do regime não merecia outra coisa.

A par disto havia do lado da Calçada do Carmo espaços onde podíamos praticar bilhar às três tabelas, simples, matraquilhos, ping-pong, xadrez, dominó, cartas e gamão.

Matraquilhos, dominó, bilhar e cartas, jogava menos mal, pois o meu avô tinha-me ensinado e quando ele jogava comigo pedia-me sempre o máximo de concentração não podia haver distracções, tinha que saber as cartas que tinham saído, no dominó as pedras que tinham saído, o meu avô sempre foi profissional no que fazia.

Nestas salas paravam reformados que eram profissionais passavam lá o dia a jogar e a dinheiro, passei muitas horas a vê-los jogar até me atrever a desafiá-los para uma jogatana eassim que tinha algum dinheiro que me permitisse aventurar lá ia eu, umas vezes ganhava outras perdia, porque não podia ganhar sempre porque senão perdia a clientela, tinha prendido isso com eles, quando havia alguém que ganhava sempre ninguém se atreviam a jogar com eles, vendo isto registei que tinha que perder algumas vezes, mas convinha que fosse pouco. No dominó e nas cartas era muito difícil ganharem-me porque o meu avô como já vos referi ensinou-me a jogar e bem, mas pelas razões invocadas algumas vezes tinha que perder. No bilhar e fruto de muita prática, safava-me muito bem, recordo-me de um dia estarmos a jogar a parceiros eu e um companheiro meu destas andanças, contra dois “profissionais”, tendo saído nós dei 25 carambolas seguidas às 3 tabelas e acabei com o jogo, a partir daí os outros dois nunca mais quiseram jogar contra mim, distraí-me, perdi clientela e financiamento para os bifes e imperiais que íamos para a Trindade beber, foi outro curso de “vida” que fiz e onde conheci uma personagem que trabalhava como alfarrabista perto da Trindade, que todos, mas todos os dias à hora do almoço e ao final da tarde se sentava numa mesa, mandava vir uma girafa só o vidro e depois pedia que lhe trouxessem uma garrafa de litro de cerveja preta, que bebia religiosamente, uma duas, três, acompanhado com um charuto ou dois e à tarde a mesma dose, isto durante anos, até morrer, nós chamávamos-lhe o bazucas, o seu retracto e a respectiva girafa por onde bebia pode ser vista lá na Trindade em exposição é o chamado monumento a uma queda.

Um dos dias mais afortunados ao jogo com um companheiro meu deu para um lanche e para um jantar que terminou às 2 horas da manhã, porque os empregados queriam fechar e só lhes posso escrever que éramos 6 e nesse dia os empregados na esplanada da Trindade, era Verão, fazia calor, arranjaram mesas só para colocar o vidro, porque começámos por girafas, passámos para as canecas e finalmente para as imperiais, fizemos um pleno, mas com muito quantidade foram muitos hectolitros, na altura os pratos com batatas fritas eram a 2$50, sim dois escudos e cinquenta centavos, que com sal, pimenta e mostarda por cima para beber uma boa quantidade de cerveja.

O ano lectivo estava a correr pelo melhor, como podem constatar, não em aproveitamento escolar mas em vivências, até que belo dia cheguei ao pé dos meus pais e disse-lhes que precisava falar com eles, ficaram admirados e eu não sabia como lhes fazer a abordagem, como sempre fui muito directo e não gosto de rodeios disse-lhes que ia chumbar com distinção, ficaram aborrecidos como é natural mas expliquei-lhes as minhas razões tal e qual como lhes estou a escrever, mas também lhes disse que era o primeiro e único ano que iria chumbar e assim foi, chumbei com distinção como costumo dizer, mas foi a única vez e não estou nada arrependido porque o que vivi, foi uma grande lição de vida.

Importa fazer uma referência ainda às simpáticas raparigas que trabalhavam no Chiado e no Grandela, que nos “ofereciam” chazinho e torradas aparadas, a troco de “conversa do bandido” e de alguns dias de namoro, mais ou menos longos determinados em função das necessidades, mas como éramos 6 neste rol, havia sempre um que arranjava chazinho e torradas para todos.

Para quem se recorda no Rossio havia também um quiosque a que chamávamos Café Gelo, onde se bebiam um whiskeys, com muito gelo e pouco whisky, mas juntava-se ali uma rapaziada gira e a minha introdução ao whisky já tinha sido feita pelo meu pai pois ele trazia ao tempo caixas de garrafas de whisky de Marrocos do melhor e cá o rapaz enquanto ele ia e vinha tomava conta das garrafas, um dia ouvi o meu pai comentar com a minha mãe parecia-me que tinha trazido mais garrafas, a minha mãe riu-se e a partir daí a quantidade da “mercadoria” aumentou, para grande prazer meu e dos meus amigos.

Como já vos escrevi este ano em termos académicos chumbei com distinção, mas em termos de vida vivida e de aprendizagem foi fabuloso, acho que fiz as coisas certas na altura certa, relativamente à bebida apesar de ter bebido muito como vos descrevi, não me recordo de ter apanhado nenhuma bebedeira, já tinha feito o tirocínio com as gentes do Arripiado, estava preparado e sempre tive a noção de saber quando parar, aliás o meu organismo dá-me esse sinal e rejeita qualquer excesso, aprendi a saber estar, a ser respeitado, a ter acesso a todos os locais e acima de tudo, respeitando o espaço, a forma de estar dos outros e a não cometer descomedimentos.

Lisboa, 23 de março de 2015

Henrique Pratas

 

 

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