Memórias (9)
20-02-2015 - Henrique Pratas
Assim que todos desapareceram do horizonte sai da minha “toca” e fui ter com os meus avós que entretanto já tinham chegado às hortas, para os ajudar a fazer qualquer coisa que fosse preciso.
A primeira pergunta veio da minha avó então Henrique o que estás aqui a fazer, chegaste primeiro que nós, por onde andaste? Primeiro murro no estômago, arranjei uma desculpa que eles não acreditaram e que foi apeteceu-me ir andar de bicicleta pelos campos e ver como estava tudo, fui ao campo dos paraquedistas, dei uma grande volta. O meu avô, calado que nem um rato, ele era de poucas falas, mas quando falava punha tudo em sentido ou então dizia uma graça que desmascarava logo o que lhe tinham dito, tinha um sentido de oportunidade e um dom de palavra espetacular. Como ele permanece calado eu desconfiei e pensei, já sabe o que andei a fazer mas não diz nada. Isto passou, propus-me para ir regar o milho, o que foi aceite, o milho como sabem tem que ser regado cedo não pode ser feito pela hora do calor e lá andei metido dentro do milho, fui regando os hectares que havia de milho plantado, pois saberia que daí proviria para os meus avós algum proveito. Posso-vos contar que era horrível fazer este trabalho, porque o milho já tinha uma altura em que eu ficava completamente tapado e o sol mal entrava, mas por outro lado como andava descalço ia metendo os pés dentro de água e sentia a terra desfazer-se entre os dedos, sensação que me fazia sentir bem.
Chegada a hora do almoço, assinalada pelo toque do sino da Igreja, quando dava as 12 badaladas, havia que me juntar aos meus avós, para comer o que tinham trazido para ao almoço e para me proteger do Sol, dado que a partir daquele momento em que o Sol, incidia com maior intensidade era a hora de pararem os trabalhos agrícolas e de descansar até às 17 horas.
Estas, horas, também avalizadas pelo sino da Igreja. Era neste tempo de lazer para os outros que eu rapazinho novo e que tinha energia para dar e vender, depois de ter comido algo com os meus avós e a contragosto destes pois eram horas de estar à sombra e descansar. O meu avô fazia a sesta a minha avó fazia outros trabalhos agrícolas à sombra e eu partia por aquelas hortas fora à procura de outras pessoas para as cumprimentar, meter conversa e saber as novidades, mal sabia eu que nesse dia iria ter uma grande surpresa, o amigo do meu pai, o Eduardo, estava de volta dos motores, porque naquela altura já havia motores para a rega, aproximei-me delicadamente e receoso, ele vi-me e disse vá anda cá, corri, sem saber ao que ia. Perguntou-me se eu estava bom, se queria comer alguma coisa, eu disse-lhe que não que já tinha comido com os meus avós, o Eduardo como bom Ribatejano que era tinha um pipo de vinho branco na casa que tinha nas hortas, onde se guardavam os materiais de trabalho e tudo o que era necessário para a atividade. Ele tinha um braseiro aceso e colou lá um chouriço assar, com a insistência dele não recusei, depois de assado o chouriço foi buscar duas canacas de vinho branco fresquinho, como convinha, a minha quantidade era menos que a dele e entre o chouriço assado, um pão de centeio, tomate, alface e pepino cortado rachado em quatro de pois de lhe ser retirado alguma da casca lateral e cortado o topo, sal lá para dentro e eu comia este petisco de uma forma deliciosa, que ainda hoje tenho saudades de fazer mas não posso porque o pepino faz-me mal, naquela altura nada me fazia mal.
A meio da merenda diz-me o Eduardo, sei tem tens andado por aí de manhã cedo a ver colocar umas coisa nas árvores, sabes o que é? Apanhado com a boca na botija e como me ensinaram a não mentir, respondi-lhe de imediato que sim era verdade mas que não conhecia o conteúdo do que colocavam nas árvores.
Ele riu-se perante a minha aflição e disse-me para comer mais um bocado de chouriço assado e beber um pouco de vinho, não me tinha apercebido mas tinha passado mais uma “prova”, daí para a frente tinha ganho a confiança de muitas pessoas sem saber. O vinho branco estava ótimo e com aquele calor soube-me a pouco mas, não podia nem devia beber mais, no meio da conversa ele disse-me logo à noite se puderes passas pela minha casa depois de jantar, agora é que foram las pensei eu para comigo, como não sou temeroso disse-lhe está bem senhor Eduardo, era assim que o tratava, pois ele tinha a idade do meu pai e o respeito era bonito.
Apesar de eu tratar todas as pessoas por senhor ou senhora e de todos eles me dizerem para os tratar apenas pelo nome, já que tinha a confiança deles e me fizeram sentir um deles, eu continuei sempre a trata-los por senhor e senhora, só muito mais tarde e só apenas alguns deles fui capaz de o tratar apenas pelos nomes.
Conforme combinado à noite após o jantar disse aos meus pais que ia a casa do Eduardo, ninguém se opôs, apenas o meu pai esboçou um sorriso, que na altura não entendi.
Chegado a casa do senhor Eduardo, bati à porta com a tranqueta, naquela altura as portas estavam sempre abertas, raramente estavam fechadas não é como os dias de hoje, a maior parte delas estão fechadas e mesmo assim são assaltadas.
Mandaram-me entrar entrei puseram-me à vontade e o senhor Eduardo pergunta-me de chofre queres saber o que põem nas árvores, então chega aqui e abre-me uma arca onde estavam uma série de “Avantes” e ele que gostava de ler mostrou-me todos os livros que tinha do Marx, Engels, Lenine, Rosa Luxemburgo e outros.
Fiquei satisfeito por ter desvendado o mistério, mais satisfeito fiquei quando ele me perguntou se queria ler algum daqueles livros, mas se o quisesse teria que o fazer com muito cuidado pois eram proibidos, mal sabia eu quanto.
Aceitei de imediato a cedência de um dos livros do Lenine, “ A Origem da Propriedade e da Família”, salvo erro o título era assim, regressei a casa com o livro escondido como me tinham recomendado e fui lendo-o às escondidas de todos ninguém se apercebeu que eu tinha aquele livro, quando acabei de o ler as perguntas eram muitas, devolvi o livro ao senhor Eduardo, como combinado e daí para a frente quando nos encontrávamo-nos nas hortas fui-lhe colocando as questões que me ocorriam e ele com a sua paciência lá me ia respondendo, ninguém suspeitou de nada pois ele era da idade do meu pai tinham sido amigos e não estranharam a aproximação.
A leitura do livro e os esclarecimentos solicitados, fizeram com que desse mais valor às coisas e percebesse melhor os sacrifícios daquelas pessoas, a partir desta altura o senhor Eduardo era uma das pessoas com quem falava abundantemente, sem abusar, porque sabia muito bem quando devia parar ao dar-lhe o espaço que ele necessitava, nunca fui intrometido e quando me diziam para ir embora era porque assim tinha que ser.
Henrique Pratas
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