CONTRADIÇÕES
08-08-2025 - Maria do Carmo Vieira
(…) acontecia que os estúpidos assumiam papéis dominantes (…).
Robert Musil (1880-1942), O homem sem qualidades, Vol. I
Nada é mais fácil para quem não pensa, e se adapta à ignorância e à maldade, que têm vindo a alastrar, do que alcunhar de «anti-semitas» os que criticam com veemência o que se passa em Gaza. A acusação absurda identifica à perfeição a mais completa ausência de capacidade analítica e crítica. No mundo, e na base da sua alienada perspectiva, existem os eleitos e os que não têm direito a existir ou que, existindo, dever-se-ão contentar com o lugar que lhes é destinado. É o mundo dividido entre quem manda e quem deve obedecer; entre quem intimida e quem deve ter medo de reagir; entre quem se exibe em espectáculo diário e quem deve forçosamente aplaudi-lo; entre quem devora e quem se deve deixar devorar.
Num exemplo flagrante do Absurdo, com maiúscula, os próprios Israelitas serão já «anti-semitas», por via da condenação do statu quo, crítica que se expressou, há poucos dias, com o «apelo» de um grupo de 19 israelitas, distribuídos entre «chefes das Forças Armadas, responsáveis de agências de espionagem e comissários da polícia», pedindo não só a Netanyhau que ponha fim à guerra, mas também a Trump que pressione nesse sentido.
O horror de imagens de Gaza, seja de Palestinianos (a população em geral) seja de alguns reféns israelitas, é bem elucidativo da crise civilizacional em que vivemos, com o alheamento de sentimentos que pareciam culturalmente intocáveis, como a compaixão perante quem sofre, ou ainda de conceitos, nomeadamente o de Humanismo que elevou, e rege de há muito, a convivência humana. A Europa apregoa-o a todo o instante, bem como os valores que lhe estão associados, não tomando, infelizmente, consciência do desaire que tem sido o seu apoio leviano ou o seu fingimento de condenação a Netanyhau. A política externa tem destas incongruências! E no meio desta tremenda hipocrisia, o sofrimento inimaginável…
Perante tudo isto, e porque o contágio acontece, não se estranhará o aviltamento no uso do vocábulo «humanismo» pelos políticos portugueses, nomeadamente os que formam o governo, e outros, mas sobretudo os que cantam, euforicamente em uníssono, «deixem o Luís trabalhar!». Uma letra festiva que aponta o eleito, na esperança pedagógica de que os súbditos compreendam a mensagem e se recolham, esperando obedientemente pelos frutos «reformistas» a vir.
Nesta onda de reescrita de conceitos antigos, que, aliás, exigiram árdua luta, ao longo dos séculos, Luís Montenegro e seguidores associam levianamente o humanismo ao «mercado a funcionar», seja nas situações de saúde ou de habitação ou das alterações ao código de trabalho ou ainda nas famigeradas regras do «reagrupamento familiar» ou da «perda de nacionalidade», no que à imigração diz respeito.
Nos tempos que correm (e foi sempre assim, em maior ou menor grau, não tenhamos dúvidas), constatamos visivelmente que há quem escolha a política para, sem escrúpulos, se servir a si próprio, em lugar de servir o país, procurando na «imundície que é o dinheiro» (Joseph Roth) o seu único objectivo. Defendem a estabilidade para o mercado e para as empresas, nós também, mas esquecem-se da estabilidade de que todos precisamos, incluindo os imigrantes, seja na habitação, na saúde ou no trabalho.
O funcionamento do mercado que conhecemos não tolera a discussão séria e abrangente e a obediência de certos políticos a essa postura é em tempo de eleições sobejamente visível. E pior, o funcionamento do mercado dá-se muito bem com aqueles que no seu discurso repetem a necessidade de «limpezas», sabendo nós também o nome da ideologia que as preconizou e difundiu em larga escala.
Engendrar o ódio não é difícil, e os seus estrategas demonstraram-no, no passado, continuando a imitação no presente não só em Portugal, como no resto do mundo. A semente do ódio foi, na verdade, há muito lançada. Não podemos deixar que germine e se dissemine livremente. Permiti-lo é abdicar dos valores humanistas que nos norteiam e nos quais acreditamos convictamente.
Maria do Carmo Vieira
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