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AUGUSTO CABRITA - A MEMÓRIA DAS IMAGENS

09-08-2024 - Pedro Pereira

O Município do Barreiro e em outras localidades do país, comemora-se este ano, através de vários eventos, o centenário do nascimento de um artista e cidadão notável que foi Augusto Cabrita, cuja obra se estende para além-fronteiras. Por tal facto, deixo aqui registado este singelo artigo em jeito de homenagem, com profunda saudade desse meu querido amigo.

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Há vários anos, no dia primeiro de Fevereiro de 1993, desapareceu fisicamente o Augusto Cabrita. Tantos anos passados de saudades do Amigo, do companheiro das «aventuras» e da arte de «viver o dia-a-dia», do Mestre fotógrafo, director de fotografia e realizador cinematográfico, de um dos maiores artistasdo século XX, ímpar entre os demais, cuja obra se encontra impressa na História da Arte em Portugal e mais além.

Augusto António do Carmo Cabrita tinha raízes em famílias de Silves, no Algarve.

Casado com uma senhora natural de Portimão, a Dª Maria Manuela Peixinho, nasceu no Barreiro em 16 de Março de 1923, terra de tradições operárias e de grande movimento associativo e artístico, onde sempre teve a sua morada.

Dessa trepidante e vibrante vila industrial (hoje cidade), ao longo dos anos, saíram nomes que se tornaram cimeiros nas mais diversas áreasdo panorama cultural português. O Augusto viria a ser um deles, inclusivamente por ser considerado um dos principais nomes portugueses do fotojornalismo do século XX.

Desde muito jovem que se dedicou à fotografia e ao cinema, tendo, por tal facto, a partir de 1949 recebido os mais diversos galardões e distinções nacionais e estrangeiros, sendo de destacar entre os mais importantes, o Prémio da Crítica, em 1962, o Prémio Nacional de Cinema, em 1964, com o filme Belarmino, os mesmos Prémios em 1970 e 1971, o Troféu Foca de Ouro, em São Paulo-Brasil, em 1968,em 1985, agraciado como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique , em 1986 com a Medalha Barreiro Reconhecido, atribuída pela CMB. Ainda nesse ano, na área da Cultura, Artes e Letras, foi distinguido com o Prémio Rizzoli (galardão internacional de fotografia publicitária), de igual forma com o Prémio Nacional pela realização do filme "Aurélio Paz dos Reis", Prémio Bordalo, na categoria “Televisão”e outros mais.

Desde o início da televisão em Portugal, em 1957, que começou a colaborar com a RTP. Nesse ano, fez a reportagem da erupção do vulcão dos Capelinhos, nos Açores, tendo tambémassinado centenas de trabalhos, como as reportagens da guerra em Angola, na Índia, do terramoto de Agadir, em Marrocos, e por aí fora.

De entre os seus trabalhos para a televisão, aquele que mais impacto teve foi a série com o título genérico de Melomanias, um trabalho em equipa com João de Freitas Branco (matemático e musicólogo) e Filipe Branco. Filmes a preto e branco em que as imagens «dançavam» ao som da música. Imagens de uma beleza impressionista, só possíveis de captar por quem ama a vida para além do que os olhos veem, por quem domina a câmara de forma magistral. Aliás, para o Augusto a vida era uma sucessão musical de imagens e escalas, de tons e sons que agarrava, que sabia trabalhar e construir como ninguém através das suas câmaras, em filmes ou fotos. Aqui, convém recordar, porque muitos não o sabem, que o Augusto Cabrita era um brilhante trompetista e pianista.

Se não tem sido fotógrafo e cineasta, o seu nome teria visto as luzes da ribalta como músico. Nos anos oitenta, mesmo após ter regressado a casa depois de uma longa e dolorosa doença, resultante de um vírus que contraiu na India, que o prostrou hospitalizado depois de várias intervenções, por longos tempos num leito do Hospital da CUF, doença de que saiu sem audição, o Augusto continuou a tocar magistralmente num piano branco, de cauda, que ocupava boa parte da sala principal da sua casa, como se o ouvido apurado tivesse. Com sentimento, com amor, quase sempre afinado. Ainda hoje recordo essas imagens com profunda saudade e muita nostalgia, espantado, todos os dias, com um Tejo sempre novo, largo como um mar, em pano de fundo para além das janelas da sua sala que se harmonizava com ele, connosco, com os amigos, com a Manuela, sua mulher, seu porto de abrigo, falecida este ano.

Da imagem de filmes que assinou, são de salientar: Belarmino, de Fernando Lopes, Ilhas Encantadas, de Carlos Vilardebó, protagonizado por Amália Rodrigues e Catembe, de Faria de Almeida. De igual modo os filmes, Os Caminhos do Sol, com Carlos Vilardebó, Na Corrente, com música de Carlos Paredes, A Catedral da Angústia, com música de António Vitorino de Almeida e por aí fora. Sobre o pugilista Belarmino, escreveu Augusto Cabrita: «A luz que o rosto de Belarmino irradiava era de uma beleza rara e comovente. Nascia assim tão natural, como nascem as coisas simples… Não era necessário dramatizar aquele rosto a golpes violentos de projector, porque o rosto de Belarmino era já dramático em si mesmo (…) Estou a vê-lo calmo e sereno no tapete do seu último combate (…) Guardo o plano na memória (…) É este o último plano de Belarmino».

Para além das centenas de exposições fotográficas em que participou ao longo dos anos, produziu incontáveis trabalhos, sobretudo, de reportagens fotográficas, com destaque para os que captou no Oriente.

De referir também os trabalhos realizados para álbuns e enciclopédias de prestigiadas editoras, como Vilas e Aldeias de Portugal, Os Mais Belos Castelos de Portugal, Os Mais Belos Rios de Portugal, Os Parques e Reservas Naturais de Portugal, A Cozinha Tradicional Portuguesa, este, em conjunto com o fotógrafo António Homem Cardoso e, Europália vista por Augusto Cabrita, (1991), com texto de Nuno Júdice.

Culto, de uma rara sensibilidade e princípios éticos, reflectiam-se esses seus dotes na maneira de estar e de ser com todos, com o seu semelhante, na sua arte, na forma de captar a vida (que amava profundamente) em imagens através das suas objectivas.

Das nossas «viagens» mantenho no arquivo da memória algumas estórias simples, mas notáveis, como aquela que sucedeu numa manhã em que fui ter a sua casa para seguirmos para Lisboa. Porém, antes de irmos apanhar o barco fomos beber café numa tasca próxima, no Largo do Casal, cujas paredes se encontravam repletas de cartazes do PCP e de outros partidos comunistas afins.

Era uma baiuca. O seu proprietário era um bom homem mas avesso às letras, tinha o jornal O Diário – periódico afecto ao PCP – aberto em cima de uma mesa, e de pé, curvado sobre a mesma, ia soletrando uma qualquer notícia em voz alta.

"À esquerda, o pintor Artur Bual e à direita, Augusto Cabrita".

O Augusto deu-lhe os bons dias e disse-lhe a sorrir:

- Então estás a ler o Pravda? (na altura o diário oficial do PC Soviético) – Furibundo, aos berros e a gesticular o tasqueiro retorquiu:

- O Pravda? - Julgas que não sei quem é o Pravda? – É um fascista como tu!

Muito nos rimos, de boa disposição.

Numa outra ocasião, à saída da Reitoria da Universidade de Lisboa onde tínhamos ido ver uma exposição de fotografia, colectiva, atravessámos a Alameda da Universidade em fim de tarde, sob um sol escaldante e metemo-nos por umas ruelas bucólicas próximo do Colégio Moderno. Com sede, entrámos numa taberna à antiga portuguesa com umas poucas mesas de tampos de mármore que em épocas passadas haviam por certo de ter sido brancas, tendo de volta uns bancos onde se sentavam meia dúzia de pedreiros brancos e pretos, provenientes de alguma obra próxima. Um bando de moscas voltejava como uma nuvem por cima de nós.

Os operários, em silêncio quase reverencial, bebiam cerveja e iam comendo talhadas de melão que passavam maquinalmente uns aos outros.

O Augusto acercou-se do balcão, deu as boas tardes e com naturalidade, pediu cervejas para nós e para os pedreiros. Sentámo-nos e o tasqueiro serviu-nos e aos outros clientes.

Começámos a beber respeitando o silêncio e como se de um ritual se tratasse os pedreiros continuavam a cortar talhadas de melão e passavam-nas também a nós em silêncio.

Comemos mais uma talhada de melão, bebemos mais uma rodada de cerveja e viemo-nos embora sem dizer sequer, boa-tarde, porque sentíamos que era como que uma heresia quebrar aquele silêncio quase ritualístico.

Já na rua, uns metros mais adiante, perguntei ao Augusto se já tinha entrado antes naquela tasca. Respondeu-me que não. Mostrei surpresa pelo que tinha observado e vivido, como se tivéssemos combinado entre nós encontrarmo-nos naquele local para beber cerveja e comer melão de forma cúmplice com os pedreiros. Respondeu-me que «é natural as pessoas simples partilharemo que comem e bebem com os seus semelhantes, sem precisarem de falar para se entenderem».

Dizia-me amiúde o Augusto que, «Fotografar é, sobretudo, a arte do olhar».

Mestre Augusto Cabrita era um homem generoso, de carácter, nobre e leal como só pode ser um Homem Vertical intemporal.

Pedro Pereira

 

 

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