Moçambique: a Táctica de Manutenção do Poder
09-08-2024 - Paulo Zua
É do conhecimento público que em Moçambique o actual presidente da República, Filipe Nyusi, perdeu a luta para impor o seu candidato à Presidência do país pela FRELIMO (o partido dominante de Moçambique, irmão gémeo do MPLA). Os barões do partido revoltaram-se contra Nyusi, aparentemente agastados pelo seu papel no processo das “dívidas ocultas”, em que lançou todas as culpas para o antigo presidente da República, Armando Guebuza, sua família e círculo próximo. Este processo das “dívidas ocultas” resultou de um empréstimo internacional obtido às escondidas do Fundo Monetário Internacional, com finalidades ainda hoje pouco claras, e que teve como consequência directa e imediata a perda da credibilidade financeira internacional de Moçambique. No processo judicial que se seguiu, Nyusi, que na data dos factos era ministro da Defesa, já como presidente da República “lavou as mãos” e deixou a família de Guebuza e associados entregue aos tribunais, onde foram condenados. Tal gerou um efectivo mal-estar nas elites dirigentes da FRELIMO, que, consequentemente, não aceitou a indicação de Nyusi para a sua sucessão.
Contudo, Nyusi não se deu por vencido e, como conta o jornalista moçambicano André Mulungo, congeminou um plano para continuar no poder. O plano terá sido accionado pelo “procurador Flávio Chongola. [que] submeteu, há dias, uma queixa ao Conselho Constitucional (CC) [equivalente ao Tribunal Constitucional angolano] atacando a incompatibilidade entre a função de PR [Presidente da República] e o exercício de funções de cunho privado, com fundamento no artigo 148 da Constituição da República de Moçambique (CRM), que estabelece que, em caso algum, o PR deve exercer qualquer função privada. Para os requerentes, a função de presidente de um partido político é de cunho privado, por isso, incompatível com o cargo de PR, o que concorre para a violação do supracitado artigo da CRM”. Chongola afirma que o seu objectivo é “a defesa do Estado de direito democrático, devido a uma incompatibilidade prevista na Constituição da República, bastante falada e até assumida por diversas esferas de posicionamento e pensamento. É a incompatibilidade do Presidente da República não poder exercer quaisquer funções privadas”.
Contudo, o objectivo de Nyusi, e destas movimentações, é manter-se como presidente da FRELIMO, impedindo que o seu sucessor na Presidência da República o seja de facto. Assim, Nyusi, qual Estaline, ficará a controlar o partido e, daí, o Estado. Na realidade, não é muito diferente daquilo que José Eduardo dos Santos tentou fazer com João Lourenço, tendo falhado rotundamente.
O artigo 148.º da Constituição de Moçambique tem a seguinte redacção:
“(Incompatibilidade)
O Presidente da República não pode, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição, exercer qualquer outra função pública e, em caso algum, desempenhar quaisquer funções privadas.”
Esta tese dificilmente vingaria em Angola.
Curiosamente, não se vislumbra norma semelhante ao artigo 148.º moçambicano na Constituição angolana. Na verdade, as incompatibilidades determinadas em relação ao poder executivo surgem no artigo 138.º e apenas se referem aos cargos de ministro de Estado, de ministro, de secretário de Estado e de vice-ministro, excluindo o exercício de cargos nos partidos políticos. Ou seja, a Constituição angolana parece permitir que os membros do poder executivo ocupem funções partidárias, não as tornando incompatíveis. Quanto à figura do presidente da República, apenas interpretações demasiado extensivas – que não subscrevemos – permitiriam pensar que um presidente da República de Angola não poderia ser líder partidário. Aliás, tal seria inconsequente com a regra actual, segundo a qual o presidente da República é eleito na lista de deputados dos partidos políticos apresentada às eleições. Portanto, a táctica de Nyusi não parece constitucionalmente viável em Angola.
Além do mais, esta ideia de que o presidente do partido controla o presidente da República – seguidora da prática estalinista, em que Estaline era meramente secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, mas através desse posto dominava tudo e todos – não funciona actualmente. José Eduardo dos Santos não percebeu isso, e foi afastado. A verdade é que, para o modelo estalinista funcionar, o partido político tem de ter a hegemonia da força e do medo, ser disciplinado e sujeito a purgas permanentes; as pessoas têm de temer pelas suas vidas se não obedecerem ao líder. Nada disso se passa em Angola. Há muito que o centralismo punitivo estalinista deixou de existir, e o controlo absoluto é impossível.
Nessa medida, é também muito possível que Nyusi esteja a laborar num erro em relação a Moçambique, já não tendo o partido a força que ele pensa que terá.
Aliás, cada vez mais parece que o fantasma do terceiro mandato não passa disso mesmo: de um fantasma que se agita para tentar condicionar determinados comportamentos. Mais importante ainda, desde a ratificação, por parte de Angola, do Protocolo de Malabo – que impede alterações constitucionais que perturbem as possibilidades de alternância –,a táctica de Nyusi é, na perspectiva jurídica, uma possibilidade cada vez mais remota em Angola.
Fonte: Maka Angola
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