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O INFELIZ SENHOR VIÇOSO

29-03-2024 - Pedro Pereira

O senhor Aldegundes Viçoso era um genuíno português como tantos outros, de barriga proeminente, onde, na qual ao longo dos anos havia feito grande investimento com lautas comezainas de rebimba-o-malho, ostentavauma luzidia careca com farripas de cabelo rodeando-a como um frade das gravuras antigas e um farfalhudo bigode por baixo do verrugoso narigão vermelhusco. Uns olhinhos semicerrados, compunham o ramalhete.

Apresentava-se como sendo um devorador compulsivo das letras gordas dos jornais desportivos, sem grandes preocupações intelectuais que lhe tolhessem o cérebro. Era fanático do Futebol Clube da Alcagoita, que se encontrava na 3ª Divisão distrital da sua terra natal e, logicamente, um grande aficionado das patuscadas ao fim-de-semana e inimigo figadal da azia e da dor de cabeça às 2ªs feiras.

Possuía um carro de marca japonesa de último modelo e um apartamento duplex nas Olaias com cinco assoalhadas. Era director de departamento numa empresa multinacional de higiene íntima feminina, auferindo um ordenado acima da média. Estava casado há uma dúzia de anos com uma vistosa mulher de cabelos loiros pintados, de traseiro sólido, saliente e oscilante a andar efartos seios empinados, com quem lhe dava gosto sair à rua e provocar a inveja aos amigos nos convívios sociais e aos demais transeuntes que com este casal maravilha se cruzavam nos diversos lugares.

Em suma: a vidinha corria-lhe de feição. Era um gosto vê-lo, ostentando nos lábios um permanente sorriso de quem estava bem consigo e com o mundo, sempre amável e cortês para todos quantos com ele conviviam.
Mas um dia (há sempre um dia…) algo começou a nascer de mansinho, que veio quebrar aquela santa paz, aquela beatífica e seráfica, mas atentatória forma de vida face à mediania dos que com ele conviviam. A desgraça, o opróbrio, o ostracismo ameaçavam-no a breve prazo.

Insidiosamente, os canais de televisão portuga, as emissoras de rádio, os variegados jornais, os membros do conselho de administração e os colegas da sua empresa, o porteiro, o padeiro, a mulher-a-dias, a esposa (a santa fada do lar) e a sociedade em geral, começaram a proclamar a toda a hora as virtudes medicinais, o segredo de bem-estar na vida e em sociedade, quiçá, em caso extremo, a sobrevivência, que outra coisa mais singela não era, do que passar a vestir roupa cor-de-rosa assanhada, incluindo a roupa interior (homens e mulheres), somente ingerir alimentos cor-de-rosa, raciocinar em cor-de-rosa e ser tementes e reverentes ao Chefe todo-poderoso e aos demais serventuários do seu governo, e afins da sua cor política, que ele dominava – e domava - com berros e punho de ferro.

Mais, a moda avançava tão rapidamente, que todo aquele que não aderisse a ela arriscava-se a ser desprezado, despedido do emprego, marginalizado pelos amigos e pela família, banido da sociedade e, quem sabe até, vir a tornar-se um pária, quiçá até, em última fase, um sem-abrigo.

Idolatrar cegamente o chefe e a sua extensa prole política e de subsídio-dependentes, incensá-lo até, na penumbra das latrinas, admirar-lhe de viva voz, alto e bom som, as suas imaculadas camisas brancas por baixo dos fatos cinzentos impecáveis, abotoando o seu rotundo corpanzil, como o de uma recatada velha virgem conventual, sorver e decorar avidamente os seus atabalhoados discursos botados num português manhoso, as suas intervenções acompanhadas de gesticulações descoordenadas, botadas numa maravilhosa voz de vendedor de alguidares de plástico, só possível graças à natureza, que generosamente o havia dotado de uma penca estilo batata doce, era o dever de todo o cidadão.

É evidente, que ao arrazoado hermético das suas faladuras ao povo, só os acólitos mais próximos tinham acesso, o condão de as descodificar e retransmitir ao povoléu. De entre eles, fervorosos e reverentes merecem destaque os seus serventuários mais próximos, lídimos espécimes vivos invertebrados fora de água salgada.

O que trazia atormentado, pois, o senhor Aldegundes Viçoso era o facto de ser daltónico, e por tal facto, ter dificuldade em destrinçar a cor-de-rosa assanhada, da azul cueca, ou até, cor-de-burro-quando-foge, facto que lhe começava a complicar gravemente a vida no seio da nova sociedade em mutação constante, que anunciava uma nova era.

Pedro Pereira

 

 

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