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SOB O SIGNO DA VORACIDADE
A Cândido Ferreira

31-03-2023 - Maria do Carmo Vieira

Vieira (1608-1697) soube bem analisar a ganância dos que mais têm, e nunca se saciam do «vil metal», escolhendo a imagem chocante do «pão», através da qual expõe igualmente a crueldade no aniquilamento do Outro, «o mais pequeno», a cuja vida «os maiores» não atribuem qualquer valor. Assim, no seu Sermão de Santo António aosPeixes, pregado na cidade de S. Luís do Maranhão, em 1654, explica Vieira, metaforicamente, e dirigindo-se aos peixes a que os homens se igualam, o que seria «menos mal»: «Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.» Mais adiante, e questionando de que modo os grandes «devoram e comem» os pequenos», elucida: « […] não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses do ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come; e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos.»

Associada a esta situação, soube, dois séculos mais tarde, Victor Hugo (1802-

-1885), na sua obra «Les Misérables» («Os Miseráveis») denunciar a injustiça flagrante que, por vezes, reina ou se manifesta, em qualquer sociedade, ao descrever a má sorte de Jean Valjean, um homem pobre que por roubar simplesmente um pão, encontrando-

-se faminto, é preso e condenado a trabalhos forçados, sabendo-se ontem, como hoje, que o roubo de um rico pode ser ignorado ou acabar prescrito na Justiça.

Serve esta introdução para dar conta da situação relativa aos empresários das grandes superfícies, cujos recentes, e inesperados, lucros excessivos, em tempo de crise, determinaram, finalmente, uma averiguação. Com efeito, o facto de se ter falado e escrito (a Deco Proteste foi um exemplo), durante semanas, sobre os preços exorbitantes de alimentos fundamentais, nos super e nos hiper-mercados, e qualquer um de nós o sentiu na carteira, terá forçado a própria ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) a intervir e a fiscalizar, no âmbito de situações que traduzem «a prática especulativa dos preços na cadeia do agroalimentar» e «a especulação dos preços que temos na prateleira», suspeitando-se já da «venda de produtos com margens de lucro brutas, a rondar os 50%». Nem o abrandamento da inflação interrompeu o aumento pernicioso de preços!

Foram esses grandes empresários que pagam a quem nos encharque com uma publicidade imbecil, que apregoa, muitas vezes, em pirosas cantorias, oferecer e proporcionar bons momentos em família, sobretudo em época natalícia, foram eles, torno a sublinhar, que no final de 2022, temendo naturalmente quebras de lucro, denunciaram o aumento crescente de furtos, incidindo em produtos alimentares básicos, como leite, comida enlatada, garrafas de azeite, imunes ao significado social de tal comportamento. E o que pensaram fazer? Contribuir com qualquer ajuda, sabendo bem que esses mesmos furtos dever-se-iam a dificuldades económicas ou mesmo a fome? Muito longe disso! A resposta foi em sintonia com a sua postura de vida cheia. O que pensaram fazer, mas certamente não farão, penso eu, dada a fiscalização em curso, foi colocar, imagine-se, alarmes nos produtos «mais escolhidos» para assim apanharem em flagrante os inúmeros «Jean Valjean»!

A recente opção pelo cabaz de IVA zero, constituído por 44 produtos, distribuídos por cereais e derivados, hortícolas, frutas, leguminosas, lacticínios, carne, pescado e ovos e gorduras e óleos, se bem que seja de louvar a iniciativa, não deixa de ser «uma opção pobre face às expectativas criadas», no juízo, que partilho, do economista Pedro Sousa Carvalho, hoje na Antena 1, na sua intervenção diária, «Contas em dia» (28.3.2023), sendo igualmente acompanhado na sua avaliação pela DECO. Sem dúvida que os maiores continuarão a comer os mais pequenos, garantidos que estão os contactos amigáveis dos «grandes» com os políticos.

Falta ver no que dará a análise da fiscalização realizada e a realizar pela ASAE, desejando-se a inflexibilidade do Governo perante estas «situações anómalas», conforme afirmou o ministro da Economia, António Costa Silva. É que, na verdade, e transcrevo ainda palavras do referido ministro, «O País está preocupado com o que se passa no sector alimentar, nomeadamente com a alta dos preços» e os portugueses, estando de acordo com essa afirmação, não querem continuar a ser «pão» para o «peixe graúdo».

Maria do Carmo Vieira

 

 

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