Viagens na minha terra
06-08-2021 - Rui Filipe Freitas
Por isso, não poupemos nesta peça
Nem máquinas, nem truques nem cenários. (…)
Em estrelas sejamos generosos,
Não falta água, fogo, montes rochosos,
Nem tão-pouco aves e alimárias.
Vamos abrir-vos neste humilde barracão
A perspectiva de toda a Criação,
Seguindo em ritmo certo o curso eterno,
Do Céu para a Terra e desta para o Inferno.
Fausto; J. W. Goethe |
Agosto é mês de viagens. No meu caso, é tempo de rumar ao norte de Portugal. Após ter permanecido em Trás-os-Montes a primeira noite, zarpei para sul e num só dia cruzei aquilo a que eu chamo os vales do degredo: Vale do Sousa, Vale do Tâmega e Vale do Ave — a Fábrica da Nação. A música continua a ser a mesma — uma polifonia dissonante dirigida por um maestro conservador, novo-rico, supersticioso e com hálito a vinho verde.Vigora ainda uma sociabilidade visigótica, petreamente impenetrável e ainda se pode ouvir o eco de vocalizações guturais exclamando: que reine o mais forte. Como me dizia um amigo por estes dias, aqui, o espaço público reduz-se a mim e aos meus. É difícil encontrar povo tão sofrido e trabalhador, literalmente morto de trabalho, não obstante, insiste em ignorar quem seja José Fontana enquanto vai a pé e de olhos fechados a Fátima, à Stª Rita e ao santinho de Beire...
Por estas paragens, não é possível distinguir o patronato dos autarcas e da generalidade dos detentores de cargos públicos. Com efeito, a política aparece na vida dos primeiros como uma alternativa a uma incipiente carreira empresarial. Desta maneira, não há autarcas. Há, sim, autarcas-empresários. Nisto, o partido mais português de Portugal foi sempre campeão. Em 2013, em Paços de Ferreira, as aventuras empresariais do executivo PPD redundaram em cerca de 70 milhões de dívida para o município. A este respeito, não posso deixar de assinalar o esforço notável do actual executivo socialista, labor que se tem materializado no equilíbrio das contas, na modernização e na aproximação aos cidadãos.
O cheiro bafiento da prelatura do franquista Josemaría Escrivá é discreta e insuspeitadamente omnipresente. (Conheço mal o Minho, mas suspeito que, em matéria de bafio, seja ainda mais denso). Na verdade, o obscurantismo religioso e a superstição continuam grotescamente presentes. A título de exemplo, num dos municípios que compõem a região, nenhum dos candidatos achou por bem assinalar a morte do Otelo Saraiva de Carvalho. Disse, nenhum, da esquerda à direita. Em vez disso, para assinalar o aniversário de uma santinha rica com pulsões místicas, filha de um adepto do Integralismo Lusitano e amiga dos pobrezinhos, decidiram rumar à sua estátua — um mamarracho medonho, grotesco e inestético, inaugurado em 1953 pelo inefável cardeal Cerejeira.
Os patrões e os novos-ricos da política — que, como vimos, são a mesma coisa — para além dos carros, da roupa, dos restaurantes e perfumes caros que usam para se distanciarem da populaça — à qual invariavelmente pertencem — apostam num vocabulário que evidencie ainda mais essa distinção. Por conseguinte, ouvir uma entrevista de um qualquer candidato a qualquer coisa é um exercício penoso. Já foi tempo em que o efectivamente conferia pergaminhos nobiliárquicos. Agora a moda é o aportar, alocar, escopo e mais uma mão-cheia de verbos e expressões que fazem de qualquer cabotino — para quem Kierkegaard é nome de perfume — num membro da academia de letras francesa.
Por tudo isto, e ainda que me seja penoso, é forçoso parafrasear Garrett: a região é pequena, todavia, a gente que nela vive, também não é grande.
Rui Filipe Freitas
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