A crise das democracias e a reforma dos sistemas eleitorais
26-09-2014 - André Freire
As reformas institucionais podem ajudar a melhorar o funcionamento dos sistemas políticos, democratizando-os e melhorando o seu desempenho. Mas, por outro lado, algumas também podem ser perniciosas.
As reformas políticas regressaram à ordem do dia. Primeiro, foi o secretário-geral do PS que, acossado por António Costa, tirou da cartola uma medida, «as primárias abertas», a que se tinha oposto no passado recente e, sobretudo, para um cargo/eleição que não só não tem substrato constitucional como, caso seja continuada pelo PS e mimetizada pelo PSD, irá reforçar ainda mais os poderes do premier num sistema que Adriano Moreira classificou de «presidencialismo do primeiro-ministro». Ou seja, uma boa ideia, abrir os partidos à sociedade sintonizando-os mais com ela, mas aplicada por motivos táticos e para o cargo errado.
Segundo, mais recentemente Seguro avançou com uma «proposta de deliberação» à AR onde avulta a expressão da vontade de reformar o sistema eleitoral, embora sem definir os contornos da mesma, exceto em dois pontos: a provável adoção do voto preferencial (permitindo ao eleitores escolher, simultaneamente, o seu deputado e o partido da sua preferência) e a redução do número de deputados (de 230 para 181). Também aqui os motivos são puramente táticos e, mais importantes, a democracia interna do partido e da bancada parlamentar (GP) foram completamente ignoradas na feitura e apresentação da proposta. Um desastre para quem diz que quer reformar o sistema político, democratizando-o e tornando mais responsável e transparente. Pelo meio, um conjunto de notáveis veio propor a reforma do sistema eleitoral no «manifesto por uma democracia de qualidade». Mas afinal podem as reformas institucionais ajudar a resolver a crise que as democracias contemporâneas atualmente atravessam? E, se sim, em que medida?
Por um lado, é claro que as reformas institucionais podem ajudar a melhorar o funcionamento dos sistemas políticos, democratizando-os e melhorando o seu desempenho. Mas, por outro lado, algumas reformas também podem ser perniciosas: por exemplo, comprimindo a componente democrática do regime e reforçando a sua componente mais liberal (ver Ignacio Sanchez-Cuenca, Mas Democracia, Menos Liberalismo, 2010). Mesmo na perspetiva mais otimista, é preciso relativizar as possibilidades de melhoria, nomeadamente porque há uma multiplicidade de fatores por detrás da crise das democracias e tal crise atinge países com instituições políticas muito diversas. Dois exemplos: a crise bate forte na Grécia apesar de usar o voto preferencial; a crise económica, a erosão do apoio popular aos políticos e aos partidos do centro são bastante fortes em França apesar do seu sistema maioritário a duas voltas em círculos uninominais (embora o regime de duas voltas, e o estímulo à política de alianças que lhe está subjacente, impeça uma maior expressão parlamentar da direita radical, enquanto não tiver aliados…). Mais importante, há vários fatores de índole política que estão por detrás da crise das democracias. No seu derradeiro livro, o eminentíssimo politólogo Peter Mair faz uma resenha das causas da crise das democracias (Ruling the void – The Hollowing of Western Democracy, 2013). Primeiro, a desvalorização da política. Esta traduz-se quer no crescimento e enorme poder de entidades não eleitas (bancos centrais independentes, entidades reguladoras, juízes/tribunais, etc.), quer nos políticos que se gostam de apresentar como «não políticos» (Tony Blair, Cavaco Silva, etc.) cavalgando e alimentando o populismo antipolítica. Segundo, o declínio da polarização ideológica, logo o enfraquecimento de dois esteios essenciais das democracias: a existência de alternativas e a clareza das mesmas. Tal deve-se não só a uma crescente moderação dos partidos radicais, mas também, em vários países, ao aumento das grandes coligações que juntam a esquerda e a direita (ou seja, juntando os partidos que deviam protagonizar alternativas e não viver em colusão). Terceiro, a globalização e a europeização exercem uma pressão fundamental sobre os sistemas políticos nacionais, enfraquecendo-os, em larga medida devido à liberalização dos movimentos de capitais. Ou seja, se «os paraísos do capital» (mínimos fiscais e sociais, desregulação laboral, etc.) não são instaurados num determinado país, rapidamente os capitais se transferem para onde efetivamente existam, estimulando a «corrida para o fundo». O economista de Harvard, Daniel Rodrik, considera mesmo incompatível o trinómio da globalização atual com a democracia e o Estado nacional: The Globalization Paradox. Democracy and the Future of the World Economy, 2012. No caso da europeização, a despolitização e o esvaziamento das alternativas passa pela pressão para a convergência nas políticas (os tratados orçamentais, os pactos de estabilidade, as regras de ouro, etc.), reduzindo o espaço de competição, e pela captura dos instrumentos das políticas (várias medidas tradicionais da política democrática, nomeadamente as que passam pela intervenção do Estado na economia, estão hoje vedadas para proteger as «liberdades dos mercados»). Mas como é que tudo isso se liga à reforma dos sistemas políticos? Bom, desde logo e acima de tudo para relativizar o alcance que uma reforma eleitoral, mesmo que profunda e feita no sentido de reforçar a componente democrática do regime, poderá ter. Em todo o caso, passemos a ela.
ANDRÉ FREIRE
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