SANTA SOFIA E O PROJECTO DO “SULTÃO” – I
18-09-2020 - Jorge Duarte
«Penso em Santa Sofia e fico muito triste», foi o sussurro do Papa francisco ao grito de vitória de Erdogan, pelo audacioso decreto de 24 de Julho, que reconverte a basílica em mesquita.
Da Comissão Europeia à Unesco, que criticou o facto de não ter sido consultada para a alteração do monumento, classificado desde 1985 como Património Mundial da Humanidade, as reacções foram imediatas mas inconsequentes. Como o foram as reacções da Federação das Conferências Episcopais Asiáticas e a imprensa grega e italiana.
Só a reacção do mundo ortodoxo foi mais contundente, na figura do Patriarca de Moscovo que garantiu as consequências negativas do decreto, nas relações entre a Turquia e o mundo cristão. No comunicado fala em “amargura e indignação do povo russo, que respondeu no passado e responderá agora à tentativa de desagradar ou espezinhar a herança espiritual milenar de Constantinopla”. As Igrejas Ortodoxas da Geórgia, Roménia, Grécia e Chipre uniram-se na defesa do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla. Bartolomeu I esconjurou, até, esta deriva “causadora de desconforto e conflito”.
Mil anos depois, ainda as duas igrejas irmãs, desavindas, não se reconciliaram para responder a uma só voz a um tal ultraje. Papa de Roma e Patriarcado Ecuménico de Constantinopla ainda não ultrapassaram Niceia. E talvez Erdogan não ousasse. Por razão semelhante, caiu e foi destruída Constantinopla em 1453, rodeada de otomanos. Maomé II também ousou.
O mesmo papa Francisco que em 2014, deixou registado no livro de visitas de Santa Sofia algo tão diferente: «Contemplando a beleza e a harmonia deste lugar sagrado, minha alma se eleva ao Todo-Poderoso, fonte e origem de toda a beleza. Peço ao Altíssimo que sempre guie os corações da humanidade no caminho da verdade, da bondade e da paz».
Decerto o presidente turco não lera esse registo, nem teria relembrado Francisco quando este o recebeu no Vaticano, em 5 de Fevereiro de 2018, que “o paraíso está à sombra das espadas”, conforme diz o hadith. Roma sentiu-o na pele, nos vários assaltos e pilhagens no século IX, ao ponto de Leão IV ter de reforças as muralhas do Vaticano (desde sempre um alvo). Toda a península itálica se recorda dos cercos, pilhagens, massacres e captura de escravos, motivados pela cobiça e expansão durante séculos; e Génova que o diga.
Hagia Sophia, a Sagrada Sabedoria, não é “somente” o maior tesouro da arquitectura da Idade Média que mudou a história da arquitectura, a maior catedral do mundo por mil anos, o valor artístico e cultural e a demostração da capacidade técnica e inventiva do mundo cristão à época. É a herança espiritual e a representação da dimensão inteligível da fé dos homens à Sabedoria do Deus verdadeiro ao qual a igreja foi dedicada. Erigida sobre duas anteriores igrejas destruídas, a primeira construída por Constantino, resolveu, Justiniano I, esse grande construtor, legislador (que inspirou o direito civil europeu) e figura mais destacada da Idade Média, juntamente com Teodora, em 537, construir a monumental e definitiva Hagia Sophia. Duas vezes consagrada e principal local de cerimónias oficiais e coroações reais. O próprio Justiniano I e Teodora aí casaram e foram coroados.
Também duas vezes vandalizada e pilhada: em 1204, por cruzados desordenados e a segunda aquando da queda do império. Assistiu às perturbações do cisma da igreja, a incêndios, revoltas, terramotos, peste bubónica e, finalmente, a profanação. Azulejos, sinos, altar, iconografia, foram retirados ou ocultados e, em seu lugar, construídos o mirab (nicho com a direcção de Meca), o mimbar (púlpito), quatro minaretes e redecoração, com versículos do Corão.
Mas por mais significativo que entendamos ser o seu valor histórico, artístico, cultural ou simbólico, o que perdemos, verdadeiramente, foi a fé nessa Santa Sabedoria. E ainda que os cristãos hoje retomassem Santa Sofia, a única coisa que dela fariam era um museu, como o foi desde 1930. Não faltam sobejos exemplos (aos milhares) pela Europa fora de igrejas demolidas, profanadas, incendiadas, e outras convertidas em cafés, bares cinemas, ou clubes nocturnos. Os símbolos maiores, as catedrais, são profanados e queimados. E quem se importa? Sem fé, não adianta ter igrejas.
E mal terminavam as celebrações de “conquista” de Santa Sofia, já Erdogan decretava a conversão de museu a mesquita de outra importante basílica cristã do século VI, em Istambul: a igreja de Chora, considerado um dos melhores exemplos da arte bizantina.
Os muçulmanos só estão a fazer o que é da sua natureza. Além da fé viva e ardente, arreigados nas suas tradições, gregários e orgulhosos, com tradição de conquistas rápidas e submissão, têm agora também os templos. O simbolismo é enorme. O mundo cristão já de nada disso precisa desde que a criatura ocupa o lugar de Deus e eleva a qualidade da razão humanista, cultuando a ciência, e a tecnologia, e convertendo-se às divindades naturais; da terra-mãe à ecologia, ao especismo, ao ecossocialismo, à ecoteologia… bastando-lhe apenas o gozo do adormecimento letárgico e anestesiante do materialismo ateísta e cristofóbico, e sepultar todos os “males” do passado europeu.
Negando essa mesma herança, o preâmbulo do Tratado Constitucional Europeu nada refere desse passado fundacional a fim de não excluir outras correntes, designadamente, o islão. E a Turquia. Estes sabem que para os cidadãos, os governantes e as instituições europeias, a laicidade acaba onde começa o islão. E ninguém quer encarar isto de frente. Ou simplesmente já se renderam, por ser tarde demais.
A única referência ao património europeu, no Tratado, é a da “liberdade”, a da “pluralidade”… Uma laicidade plural em movimento; um fluxo líquido em evaporação. Basta lembrar as violentíssimas reacções da esquerda europeia quando, há um ano, a nova presidente da Comissão Europeia, Ursula Van der Leyen, faz referência ao “modo de vida europeu”, na pasta que inclui a área das migrações. Ou seja, não há modo de vida europeu. Acabou.
Continua na próxima edição
Jorge Duarte
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