Não acredito em bruxas
28-08-2020 - Armando Alves
Ouve-se um uivo. Mas o problema não é tanto o som mas sim a hora a que se ouve. Antes do sol se pôr, é certamente o uivo de um cão vadio, pois então. Está tudo bem. Há pessoas na rua, o céu está azul, o que mais haveria de ser? Depois do sol se pôr já é certamente um lobo.
Há que ter cuidado, está escuro, faz frio e há que trancar as portas. Dá-se que à meia-noite, diabos me levem se um uivo não é de um lobisomem!“A cidade dorme e eu estou sozinho”, pensam centenas de pessoas em simultâneo com os cobertores até aos olhos, qual fortaleza impenetrável que nos protege das criaturas da noite. E é sequer noite de lua cheia? Deve ser, pois então, ouvi um lobisomem uivar, só pode ser.
Ui que até arrepia, um cão não uiva assim. E arranjar balas de prata a esta hora? Amanhã vou comprar, reforçar os trincos, meter tábuas nas janelas, que essa é que é a escolha inteligente. E assim se adormece meio preocupado com o lobisomem, meio descansado pelo que faremos quanto a isso. Mas a pessoa amanhece tal como o dia e a cor das coisas é outra. Era um cão, dizemos a nós próprios, claro está. E se uma pessoa comentar que teve medo e que fantasiou que era um lobisomem ainda rimos dela. É tolo, um lobisomem, onde é que já se viu?
No escuro, respondemos cá dentro sem querer. É que de dia tudo é muito lógico, tudo é científico, não há bruxas nem fantasmas e ninguém tem medo da morte. Mas à noite até o ateu junta as mãozinhas e pede a deus protecção só para jogar pelo seguro e acorda todo contente por puder ser ateu por mais um dia. Vive-se assim, às metades.
De dia é uma gritaria, no trânsito, nas filas, no trabalho, que comigo ninguém fala assim, dizemos nós. Há noite, cabeça em baixo e não digas nada que não sabes quem é que vai do outro lado da rua, pensam dois pedestres que se cruzam.
O gato de dia é um animal como os outros, preocupado em encher o bandulho e dormitar por aí, à noite é moribundo e exotérico e traz mensagens do além. Se for preto até dá azar, mas só de noite, de dia já nem nos lembramos que isso se costumava dizer.
Até para ir à casa de banho a jornada é diferente. Um passinho de cada vez, não vá estar um desses poltergeist à espera para nos tramar. E nada de olhar no espelho, que à noite há coisas que só se vêm no reflexo.
A maioria das pessoas nem é supersticiosa só que, com o sono, esquece-se disso quando apaga a luz. Eu não acredito em bruxas mas já agora deixa-me meter o terço aqui pendurado na cama.
Condição humana, durante o dia diríamos que tem a ver com o hemisfério do cérebro responsável pela criatividade estar mais activo durante a noite, enquanto o lógico toma as rédeas de dia. Mas há noite diríamos que de dia uma pessoa anda desatenta.
Como será interpretado este texto? Depende da hora.
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