O caminho da renúncia
05-09-2014 - Jorge Bateira
Num artigo muito revelador, no "Público" (31 Agosto), Teresa de Sousa (TS) manifesta uma expectativa angustiada: que Matteo Renzi e Manuel Valls, respectivamente chefes dos governos italiano e francês, sejam capazes de "provar que há uma alternativa à política de austeridade salvífica, capaz também de levar em conta a economia global e a estabilidade do euro". Em sua opinião, a estrondosa derrota nas europeias e a dramática quebra de popularidade do presidente francês devem-se à "falta de coragem para fazer as reformas". Pensava eu que era por causa das políticas de austeridade, desemprego em alta e capitulação perante a Alemanha, de que beneficiou Marine Le Pen. Precisamente o contrário do que tinha prometido na campanha eleitoral.
Assumindo o fracasso das políticas adoptadas nos últimos anos, TS espera que a nova geração de líderes do centro-esquerda, onde inclui António Costa, seja capaz de "ganhar de novo a confiança dos eleitores do centro, sem os quais não há vitórias eleitorais". Uma vez no governo, espera destes centristas novas "reformas estruturais" à Schroeder - para desespero de TS, a França ainda não foi capaz de as fazer - e a aceitação da tutela da Alemanha na governação do euro, possivelmente recebendo como brinde alguma flexibilização do Tratado Orçamental. Evidentemente, também deverão adaptar-se à globalização, o que inclui a livre circulação de capitais e os paraísos fiscais com que o euro trabalha, como bem sabemos pelo BES.
Repare-se que para TS, como de resto também para Jorge Almeida Fernandes (JAF), na mesma edição do "Público" (França: PS perde a "vergonha de governar"), a saída desta crise está nos incentivos às empresas e nas reformas que as beneficiam (estímulo à oferta), como se não estivéssemos perante uma enorme e prolongada crise de procura, desgraçadamente agravada pela política económica adoptada. A cegueira ideológica é tanta que JAF chega a inventar uma política expansionista que teria falhado na primeira parte do mandato de Hollande. Provavelmente referia-se ao funcionamento dos estabilizadores automáticos (redução dos impostos, aumento dos subsídios sociais), com o decorrente aumento do défice, tomando-o por uma política orçamental expansionista. Bastar-lhe-ia saber o que foi o New Deal de Roosevelt para perceber o ridículo da afirmação. Obviamente, uma política orçamental genuinamente keynesiana está excluída dos tratados da UE.
Pior ainda, estes analistas continuam a fazer de conta que os cortes na despesa, se forem suavizados por um deslizamento nas metas do défice, são compatíveis com o crescimento económico e, presume-se, com a redução significativa do desemprego. Sabem muito bem que, nesta conjuntura, a redução de 1% em salários, pensões ou investimento público conduz a uma redução do PIB muito superior a 1% (um multiplicador entre 1,7 e 2,2, dependendo do país), como o próprio FMI admitiu num mea culpa hipócrita. E também sabem que a deflação, em que boa parte da zona euro, incluindo Portugal, já se encontra, é o resultado da aplicação generalizada desta política pró-cíclica. Estarão mesmo convencidos de que, com uma austeridade suave, sairemos da armadilha da deflação?
Estes analistas também sabem que a desvantagem acumulada na competitividade-custo da indústria francesa e italiana relativamente à alemã nunca poderia ser recuperada através de uma redução nominal dos salários, muito menos quando a própria Alemanha instituiu a estagnação salarial (as tais reformas de Schroeder), estando agora também ela a caminho da deflação. Com euro e globalização desenfreada, nem Valls nem Renzi podem travar a desindustrialização dos respectivos países. Estes analistas sabem tudo isto, mas continuam a pintar o inevitável fim do euro com as cores da catástrofe, como se não estivéssemos já a vivê-la e não caminhássemos para pior.
Lembrando Jacques Sapir (Valls et le renoncement), a escolha do novo governo de Hollande "não é a da coragem, não é a da vontade, é a da renúncia." É essa a escolha dos que dizem querer defender o Estado social permanecendo no euro.
Jorge Bateira
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