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O SINO

03-04-2020 - Armando Alves

- Não há conjunto de sons possíveis de elaborar que me faça acompanhá-lo nesta loucura!

- Um saco de pequenas pedras douradas caiu sobre a mesa fazendo com um tilintar aliciante.

  • Ora, já para amanhã, é?

Miguel De Sanjo era um desses homens muito convicto de que era convicto. Teimava que era teimoso mas não tinha estômago para a coisa. Era a empatia, compreendia a motivação dos outros melhor que a sua. Um indivíduo, sem ter de ser muito sensato, abriria pelo menos a bolsa. Mas De Sanjo era de confiar, e afinal de contas, o seu contratante era um homem de fé . De sanjo nunca se sentira capaz de delinear planos mas agradava-o ter um. Um objetivo ao qual outros são ignorantes. Encantava-o a ideia de andar por aí com o seu próprio destino em mente. Quando decidiu elaborar um, este não podia deixar de ser... peculiar.

Após uma noite bem dormida, onde inúmeros tinham dormido pela última vez, Doutor Filopino abriu a janela da estalagem espreguiçando-se como se de um belo dia se tratasse. Lá fora, já dois homens de família se esbufeteavam à conta de um jogo de berlinde onde um apostara um peixe-gato, e o outro um cachimbo que do uso já nem precisava de ser aceso para saber a tabaco.

  • Bom dia, meus senhores!
  • A tua mãe, cara de Javali! - Saudou-lhe um.
  • Vai coçar um mocho, saco de entulho. - Comprimentou o outro retomando uma bufetada que tinha ficado à espera que os cavalheiros se resolvessem.

Solião, a capital da honestidade, o que levava a alguma desavença. Violência poderia ser considerado o desporto oficial da cidade. Ninguém experienciara realmente Solião até lhe saltar um dente nas ruas de calçada.

Um firme pancada repetida na madeira da porta, despertou o médico dos seus pensamentos.

- Entre… - Mas quem estava do outro lado não parecia estar à espera da autorização. Não é que a porta se tivesse aberto, mas bem no centro desta, estava agora um buraco onde caberia a cabeça de um javali. O projectil que a atravessara estilhaçou a janela e foi embater no sino da igreja, badalando o coitado com tal agressividade que este se soltou das traves que o seguravam e caiu torre abaixo, destruindo piso de pedra atrás de piso de pedra. Dona Matilé que rezava o terço deu por si encopada dentro de uma armadura de ferro que até hoje jura ser a proteção de uma qualquer divindade que só os nascidos e criados em Solião fazem a menor ideia da sua doutrina.

Pelo buraco da porta, assumou-se uma cabeça com um ar curioso.

- Acertei-lhe? Perguntou Miguel De Sanjo esperançoso.

- Felizmente, não, mas faltou pouco! - Filopino não sabia o que fazer da situação e francamente o choque tomara-lhe conta da boa disposição.

- Isso é que é preciso. - Desabafou De Sanjo colocando o braço pelo buraco à procura da maçaneta.

- Isso é que é preciso? Você disparou uma bala de canhão pelo meu quarto adentro, homem!

- Sim, sim, - Concordou De Sanjo entrando pelo quarto e sentando-se na mesinha junto ao buraco da janela. - Mas falhei amigo, aí é que está a porra. Importa-se que fume?

- Há dez minutos importava-me, agora não acho que faça diferença.

- Tem alguma coisa que se beba?

- Tenho a chaleira ao lume, mas você acabou de disparar uma bala de canhão pelo meu quarto a dentro.

- E pelo seu quarto a fora.

- De facto.

- E as boas maneiras não se aplicam, por causa disso?

Dividido entre a indignação e as boas maneiras, Filopino achou por bem pegar no revólver que guardava na sua mala e apontar o cano ao estranho.

- Você vai é explicar-me tudo, e é já.

- E vou.

- Vai?

- Eu, por mim, vou.

- Por causa do revólver?

- Não, homem, mas se quiser apontar, aponte.

De Sanjo acendeu um cigarro. Filopino estava perplexo. Examinava agora o canhão. Era uma peça imensa! E com rodas, estava no terceiro andar. Que raios?

- Você podia segurar a pistola com uma mão e trazer-me um cafézinho com a outra, não?

- Não é uma pistola, é um revólver.

- Faz diferença?

- Julgo que sim! Irra, que você é insistente, homem! Como é que trouxe um canhão até aqui?

- Devagar.

Filopino olhava-o de queixo meio caído, o cano do revólver a pender como se a própria arma tivesse desistido. Da boca de De Sanjo, por sua vez, pendia o cigarro mal enrolado.

Na rua, uma multidão começava a juntar-se à volta da torre do sino. Em frente à janela, apenas uma mão cheia de pessoas se questionava.

- Você vai ficar aí até chegar alguém?

- Quem?

- Algúem!

- Quem?

- Alguém tem de chegar!

- É o terceiro andar, amigo, nem a empregada se dá ao trabalho.

- Você disparou um canhão, dentro de uma estalagem! Alguém há de vir ver o que raio se passa.

- O canhão é disparado todos os dias, amigo, por volta desta hora.

- Aqui?

- Não, está doido ou quê, e vinha o carpinteiro arranjar a porta todos os dias, não? Para o lado do Mar, no salão este.

- Para quê?

- Passar a mensagem.

- Qual mensagem?

- De que a estalagem tem um canhão. É um lembrete importante.

Filopino coçava a testa com o cano do revólver.

- Traga lá o café homem, Insistiu De Sanjo.

- Você. Disparou. Uma bala. De canhão. contra mim.

- Contra o sino. E o doutor pode muito bem estar indignado sentadinho a beber um cafézinho, ou não?

Filopino equacionou a ideia. Ainda de revólver na mão, as boas maneiras levaram a melhor e serviu uma caneca de café e duas colheres de açúcar ao seu sórdido convidado.

- Não se enerve amigo, é só uma bala de canhão.

- Eu não me enervo com a bala, a questão é que raios fazem 7 quilos de chumbo a 100 km à hora no meu quarto.

- Você não sabe um toucinho de matemática, homem. A verdade é que o sino já viu nascer e morrer oitenta e dois padres.

- E o Padre Alavure queria muito ser o padre que iria inaugurar um novo sino em Solião.

- E?

- E já não vai para novo, coitado.

- E o seu plano é destruir a igreja inteira?

- Eu? Eu não destruí coisa nenhuma.

- Desculpe?

- Que porra vem a ser esta? - Uma voz dominada pela raiva entrou na porta do quarto.

- Oh chefe Amadeu, bom dia.

- Bom dia as fuças da tua prima! O que raios se passa aqui?

Filopino deu por si de revólver na mão apontado a um estranho sentado no seu quarto a beber café com uma igreja a colapsar na paisagem e um taberneiro furioso à sua porta.

- O seu novo hóspede não está para brincadeiras, o homem estourou com o sino da igreja porque o barulho o irritava. - Desabafou Filopino.

- Eu? Como? O quê? O sino ainda nem tocou desde que cá estou. Como? É mentira! - Decidiu-se por fim.

- Gerumina! - Gritou o taberneiro para a porta. - Traz a caçadeira!

Filopino virou-se para o taberneiro incrédulo, esquecendo-se que na sua mão tinha um revólver, no momento em que a esposa do taberneiro, que em tudo se assemelhava ao marido à excepção do bigode, que ele não conseguia fazer crescer, entrava porta a dentro.

- Ah sua manta de retalhos mal lavada! - Gritou a taberneira. - Larga essa porra dessa arma já ou esbaralho-te todo de chumbo.

- Eu, ãh? Eu, claro, não, sim, isto é…

- Larga a pistola.

- É um revólver…

- Larga essa porra ou faleces com ela na mão, boi dum cabrão.

A apatia do pobre médico desvaneceu-se à luz da ideia de não ter tempo para o fazer depois. Lentamente, baixou a arma e pousou-a no chão.

- Eu juro-lhe, minha senhora, que este indivíduo é que disparou o canhão.

- Tu juras é as pedrinhas todas da torre da igreja que vais pagar para reconstruir seu grande desgraçado! Tu sabes quantos anos tem aquele sino? É um monumento da nossa ilha, seu tijolo de papel. - Gritou-lhe o taberneiro.

- Eu… Mas… O cavalheiro disse-me que o padre queria um sino novo?

- O Homem está bêbado. - Decidiu-se De Sanjo que decidiu assomar-se à janela. - O cretino do médico que está alojado neste quarto, passou-se da cacholeta e rebentou com a igreja!

O povo de Solião não precisa de muito para se indignar, pois a vontade de o fazer já lá está.

Doutor Filopino vai levado em algemas pela cidade fora enquanto choviam todo o tipo de legumes como se de uma sopa se tratasse. A sentença foi declarada e o pobre coitado fora deixado com a escolha do seu destino, entre pagar a reconstrução da igreja ou enfrentar a forca. A decisão foi tomada com alguma celeridade e quando o sol se pusesse, já o médico teria assinado, sob pena de morte de não o fazer, os contratos que o tornariam no mendigo mais erudito das ruas de Solião, onde mendigaria durante doze anos antes de conseguir juntar a quantia necessária para atravessar novamente o oceano de regresso a casa.

Depois do tumulto do dia, a cidade não falava de outra coisa. Embora rico, a quantia de que o médico dispunha estava longe de ser a suficiente para reparar a igreja e o povo de Solião arregaçara as mangas, e pela primeira vez em dois séculos, juntara-se por um bem maior. Foi um dia que ficou para a história. A Igreja levaria seis longos anos para estar completa mas o povo sairia unido por memórias de entreajuda que talhariam a educação de futuras gerações.

Nessa noite, o Padre Alavur encontrou-se novamente na taberna com Miguel De Sanjo, a quem ofereceu uma larga caneca de cerveja.

- Que tragédia. - Suspirou o Padre. De Sanjo piscou-lhe o olho.

- Eu disse-lhe que era o homem certo para o trabalho.

- Que trabalho?

- O sino, senhor Padre. O sino novo para a igreja.

- Miguel… - Sua santidade fez uma pausa. - Tiveste alguma coisa a ver com o acidente da igreja.

- Não, claro que não. - De Sanjo piscou novamente o olho ao Padre.

- Miguel…

- Sim, senhor Padre.

- Ontem à noite, por volta desta hora, nesta mesma mesa. O que é que eu te pedi?

- Um sino novo, senhor padre.

- De mão.

- Desculpe?

- O sino, que eu uso durante a cerimônia.

- Aquele pequenino?

- Aquele pequenino, Miguel.

- Aquele que o ferreiro vende a 6 cobres?

- Aquele que o ferreiro vende a 6 cobres, Miguel.

- Mas o senhor deu-me uma bolsa cheia de…

- De 9 cobres Miguel.

- Seis para o sino…

- Três para ti, Miguel.

- Ups, percebi mal, eu pago a próxima.

Armando Alves

 

 

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