"É muito improvável que portugueses recuperem rendimento perdido"
23-05-2014 - João Ferreira do Amaral/RR
O economista em entrevista à Rádio Renascença afirma que não quer ver Portugal "nesta União Europeia" e avisa que "mais cedo ou mais tarde haverá uma ruptura política".
Portugal tem mais 20 anos de “condicionalismos comunitários” pela frente para reduzir a dívida e “será muito improvável” que as famílias portuguesas recuperem os rendimentos perdidos durante o programa da troika, afirma o economista João Ferreira do Amaral. O professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), que acaba de lançar o livro “Em Defesa da Independência de Portugal”, diz que “Portugal, hoje, não decide quase nada sobre o seu futuro”. E avisa: a liberdade do país vai “continuar muito reduzida” após o 17 de Maio, dia da conclusão do resgate.
O Governo diz que Portugal reconquistou a liberdade com o fim do programa de ajustamento. Concorda?
Não. A liberdade de decisão continuará muito reduzida. Ficamos sujeitos ao regime do tratado orçamental, que entrou em vigor no ano passado. O tratado diz que um país não pode ter uma dívida pública superior a 60% do PIB, nós temos mais do dobro e, enquanto estivermos fora desse limite, continuamos sujeitos à fiscalização comunitária. E mais: teremos de fazer, segundo o próprio tratado, uma espécie de parceria, uma espécie de acordo com as autoridades comunitárias, que no fundo acabam por definir a nossa política económica. Portanto, continuaremos, durante muito tempo, a estar sob direcção comunitária.
Quanto tempo?
Segundo o tratado, temos de reduzir um vigésimo da nossa dívida pública acima dos 60% por ano, o que significaria que teríamos cerca de 20 anos para reduzir até 60% do PIB, partindo dos 120 e tantos por cento que temos actualmente. Durante esse período ficaremos sujeitos aos condicionalismos comunitários da tal parceria com as autoridades comunitárias. Portanto, na melhor das hipóteses, são 20 anos. Penso que isso não é possível.
O Governo foi acusado de ir além da troika. Considera que defendeu a soberania nacional?
A questão, neste caso, não se punha muito nesses termos, punha-se em termos de há três anos, aparentemente, não haver dinheiro para o Estado satisfazer os seus compromissos internos. Penso que não foi uma questão de opção, foi mais uma questão de necessidade que se teve de embarcar neste programa. Agora, o programa, além de mal delineado, podia ter sido melhorado. Houve falha do Governo em não negociar. A partir do momento em que se provou – e foi logo ao princípio - que Portugal estava empenhado em reduzir o défice público, poderia ter aí margem de manobra para negociar alguma flexibilização do programa, que teria levado a melhores resultados, porque o programa está longe de ser um sucesso.
Faz sentido ter metas tão ambiciosas para o défice?
Penso que não. Julgo que, justamente, isso foi um dos erros do programa, que poderia ter sido corrigido ao longo da sua execução, porque tentar fazer um ajustamento tão rápido, tão profundo e em tão pouco tempo levaria, como levou, a criarem-se problemas muito graves na nossa sociedade, nomeadamente o altíssimo nível de desemprego e a pressão para a emigração, que está a ter efeitos muito grandes sobre a nossa sustentabilidade demográfica.
No seu novo livro escreve que a maior ameaça à independência nacional é o actual processo de integração europeia. Não quer Portugal nesta UE?
De facto, não gostaria que Portugal tivesse que estar nesta União Europeia. Tenho esperanças que a União Europeia se reforme profundamente. Se não se reformar, penso que o seu destino é acabar. Neste momento, as tensões são muito grandes. O problema da União Europeia é que, a partir de 1992, com o Tratado de Maastricht, começou um processo que pôs em causa os dois grandes princípios base da integração europeia: o princípio da igualdade entre os Estados e a harmonização entre os interesses comuns e os interesses autónomos de cada Estado. Entrou-se num caminho de desigualdade entre Estados, que foi depois muito agravado com o Tratado de Lisboa, que instituiu o chamado “directório” de países, rapidamente capturado pela Alemanha.
Por outro lado, a partir de 1992, viu-se um enorme centralismo de decisões nos órgãos comunitários. Os países não têm hoje autonomia suficiente para prosseguir os seus interesses. Portugal, hoje, não decide quase nada sobre o seu futuro e não é por causa do programa de assistência financeira da “troika”: não decide porque todas as decisões importantes para Portugal, ou quase todas, estão hoje a ser tomadas por órgãos comunitários. Isto é inaceitável. E é inaceitável para Portugal como para muitos outros países.
As eleições europeias podem contribuir para esta mudança que defende?
Elas vão dar um sinal, penso eu, não necessariamente em Portugal – em Portugal, penso que não haverá grandes alterações -, mas na Europa no seu conjunto. Vai, provavelmente, aumentar muito a votação em partidos que são contra o actual estado de coisas, por umas razões ou outras. Portanto, isso pode ser um sinal para que os governos dos grupos parlamentares europeus, que continuarão a ser maioritários, embora menos, pensem duas vezes sobre o que querem fazer desta União.
As famílias portuguesas vão conseguir recuperar os rendimentos perdidos nos últimos anos?
Será muito improvável que consigam recuperar, porque a política que tem de ser seguida para conseguir o tal objectivo de redução da dívida pública para o nível de 60% do PIB, em 20 anos, é de uma austeridade ainda maior do que tem sido. Eu penso que é inexequível, portanto, mais cedo ou mais tarde haverá uma ruptura política. Não é possível a um país estar 20 anos em austeridade e, certamente, entretanto, haverá crises de maior ou menor gravidade, por isso, seria um enorme risco para Portugal e para a União Europeia enfrentar uma próxima crise financeira num estado de debilidade em que estas políticas lançaram a Europa e, em particular, países como Portugal.
Portugal tem condições para resistir sozinho nos mercados ou um novo resgate pode ser um cenário provável, a médio prazo?
As crises são um bocado como os sismos: não sabemos prever quando haverá e com que intensidade, mas sabe-se que numa região sísmica haverá necessariamente sismos. Nos mercados financeiros é a mesma coisa. É visível que Portugal não tem margem de manobra para poder resistir a uma crise financeira grave internacional. A própria União Europeia, em particular a Zona Euro, está numa situação muito débil, quer em termos de desemprego, quer até em termos de redução de rendimentos, para resistir a uma nova crise financeira mundial. É um aspecto que devia levar os governos a pensar, com muito cuidado, em não prolongar demasiadamente programas de austeridade que vão debilitando cada vez mais as sociedades.
Um conselheiro de Durão Barroso disse que as ajudas a Portugal e à Grécia foram resgates aos bancos alemães. Concorda?
Sim. Isso já tem sido dito. É evidente que facilitou que os bancos alemães e de outros países deixassem de ter dívida pública portuguesa e passassem a ter outras aplicações. Mas isso, em si próprio, não é bom nem mau para Portugal. Nós tínhamos uma dívida que já não dava para nos financiarmos nos mercados e teríamos sempre de ter uma ajuda. O que é criticável na acção da Comissão Europeia foi que colaborou num programa mal concebido desde o início e que, ainda por cima, só foi revisto à medida que se verificava que não estava a resultar, em vez de ter sido revisto na altura própria. A acção da Comissão Europeia foi muito negativa na gestão deste programa.
No actual contexto europeu, faz sentido falar em soberania nacional, pelo menos, tal como a conhecemos?
Faz todo o sentido e uma boa parte do meu novo livro é a discutir o sentido em que se deve tomar. Com os valores que tenho e em que fui ensinado a ter, prezo muito a independência e a soberania nacional. É evidente que num espaço integrado também é preciso ter em conta a soberania dos outros e para isso é que há a gestão comum de certos interesses colectivos. Agora, o essencial dos destinos de um país tem que ser determinado pelo povo desse país e não por uma organização burocrática. Esse é o grande erro da União Europeia actual: estar a transferir cada vez mais poderes ou já ter transferido demasiados poderes para órgãos centrais. Um centralismo absurdo que pode ser a morte do próprio processo de integração europeia.
A saída do euro permitiria recuperar uma parte do controlo?
Não creio que um país possa ser independente sem ter uma moeda própria. Um país para ser independente tem que ter instrumentos para gerir as suas próprias dependências. Hoje o mundo é cada vez mais globalizado, somos todos mais interdependentes uns dos outros e, no fundo, a independência é saber e poder gerir essas interdependências e, para isso, são precisos instrumentos e um instrumento essencial é a moeda própria. Além de ser errado do ponto de vista económico, é fundamentalmente errado do ponto de vista político ceder a soberania monetária. Não digo para amanhã, nem para depois de amanhã, mas espero que possamos reaver a nossa soberania monetária. Penso que há boas possibilidades de isso vir a ocorrer no futuro.
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