Davos. Desigualdade ameaça estabilidade mundial
24-01-2014 - Diogo Vaz Pinto
Em Davos, Merkel continua a defender as medidas de austeridade, mas há quem entre no combate contra a desigualdade económica
A humanidade tem de ser "servida pela riqueza e não governada por ela". O Papa Francisco já tinha defendido que as sociedades actuais não deviam viver regidas pelo dinheiro e quis que o seu representante no Fórum Mundial Económico (FEM), o cardeal Peter Turkson, defendesse de novo a ideia no Fórum de Davos que arrancou ontem. Francisco quis assim lançar um apelo aos decisores políticos, de que se responsabilizem pelos mais desfavorecidos e vulneráveis, promovendo uma justa distribuição da riqueza mundial.
No seu último relatório global, o Fórum Económico Mundial concluiu que a desigualdade económica se transformou na principal ameaça à estabilidade mundial. Depois de a crise económica e financeira ter sido o tema central dos debates do fórum em 2013, este ano o presidente do FEM, Klaus Schwab, na abertura do evento, quis pôr no centro das discussões os valores humanos.
O presidente do Goldman Sachs, Lloyd Blankfein, também presente no fórum, disse à BBC que acredita que "o pior da crise" está já para trás, enquanto o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, garantiu que havia já significativas melhorias no desempenho dos mercados europeus, adiantando que esperava que a economia da zona euro começasse a recuperar já na segunda metade deste ano.
E se o primeiro-ministro holandês manifestou "frustração" por os países da zona euro se mostrarem "demasiado" centrados na gestão da crise, a chanceler alemã, Angela Merkel, voltou à carga, considerando que os países europeus devem continuar a promover medidas de austeridade para reduzir o nível da dívida. "Temos de implementar as reformas estruturais hoje para vivermos melhor amanhã", disse.
Foi o Nobel da Economia Joseph Stiglitz que recuperou o tema da desigualdade económica, atacando a administração norte-americana por nada fazer para combater a tendência que tem levado os que compõem o 1% mais privilegiado da sua população a acumular uma fatia cada vez maior da riqueza, recuperando as conclusões do último relatório da Oxfam, divulgado na segunda- -feira como um alerta em antecipação do FEM.
Ilustrando o crescente fosso entre ricos e pobres - nomeadamente, através dos dados que mostram que as 85 pessoas mais ricas do mundo têm recursos equivalentes a cerca de 3570 milhões de pessoas mais pobres - se o estudo da organização humanitária captou atenções, não causou grande surpresa.

Já há uns anos, Branko Milanovic, o economista que lidera a equipa de investigação do Banco Mundial, tinha estimado que, entre 1988 e 2008, os mais ricos viram os seus rendimentos subir 60%, ao passo que os 5% mais desfavorecidos não tinham tido qualquer melhoria nas suas condições de vida. O mais surpreendente no relatório será mesmo a relação entre a desigualdade económica e um "sequestro democrático", com a ideia de que o poder político tem compactuado com o poder económico "governando para as elites".
O director da Oxfam, José María Vera, em entrevista ao "El País", diz que a actual crise se explica pelo problema da desigualdade económica, estando a sua origem "nas dinâmicas perniciosas através das quais o interesse público e os processos democráticos foram sequestrados pelos interesses de uma minoria".
Entre as políticas definidas nos últimos anos que favorecem a minoria mais rica, a organização destaca a desregulação e a opacidade financeira, os paraísos fiscais, a redução de impostos sobre os rendimentos mais elevados e os cortes na despesa com os serviços públicos e no investimento como as medidas com mais impacto.
O relatório constata ainda que, no caso da Europa, "as tremendas pressões dos mercados financeiros impulsionaram medidas drásticas de austeridade que atingiram sobretudo as classes baixa e média, enquanto os mais favorecidos se aproveitaram dos planos de resgate públicos".
Os números são claros e indicam que desde a década de 1980 a tendência para "separar cada vez mais as pessoas" está a agravar "as tensões sociais e a elevar o risco de ruptura social". Nos EUA, por exemplo, a fortuna dos que compõem o 1% mais rico da população absorveu 95% do crescimento posterior à crise financeira, enquanto na Europa o património das dez pessoas mais ricas (cerca de 217 mil milhões de euros) é superior ao total das medidas de estímulo à economia aplicadas entre 2008 e 2010 (200 mil milhões de euros). Já em Portugal, ao longo das últimas décadas, os mais ricos viram os seus rendimentos mais do que duplicar, uma situação que, segundo a Oxfam, "tem vindo a piorar".
E o relatório abre ainda um parêntesis sombrio para lembrar que "é provável que, na realidade, a concentração de riqueza na generalidade dos países seja muito maior, dado que uma grande parte dos rendimentos dos mais endinheirados se oculta em paraísos fiscais". A Oxfam calcula que, além dos 110 biliões de euros nas mãos de apenas 1% da população - um valor 65 vezes maior do que o total de recursos de que dispõe a metade mais pobre da população -, existam ainda pelo menos cerca de 13 717 milhões de euros não registados.
Em 2011, o próprio Fundo Monetário Internacional mostrou num estudo a correlação positiva entre maior igualdade na distribuição da riqueza e a sustentabilidade do crescimento económico. Desde logo porque isso resulta num estímulo ao consumo e num aumento das poupanças susceptíveis de serem depois alocadas ao investimento empresarial, aumentando por sua vez a base tributária.
No caso dos EUA, o estudo concluía que a redução de 10% da desigualdade significaria um incremento de 50% na duração do crescimento económico.
Voltar |