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O problema de Putin com a imprensa semilivre

11-01-2019 - Nina L. Khrushcheva

Durante a sua amplamente difundida conferência de imprensa anual, ocorrida no mês passado, o presidente russo Vladimir Putin mostrou-se confiante e condescendente, e apenas se animou ao criticar a Ucrânia por escaramuças no Mar Negro e ao protestar contra as queixas “injustas” do Ocidente sobre o comportamento da Rússia. Afirmando que o abandono, pela América, do Tratado sobre Forças Nucleares de Médio Alcance de 1987 exige que a Rússia desenvolva novas armas, ainda gracejou dizendo, “e que não venham mais tarde lamentar-se que estaremos a tentar apropriar-nos de determinadas vantagens”.

O personagem de Putin era um cruzamento entre o embaixador soviético de “Dr. Estranho Amor”, que prometia colmatar as “lacunas de Juízo Final” para com o Ocidente, e o   Ded Moroz   (Pai Inverno), que resolve miraculosamente os problemas das pessoas. Este é um repertório simplificado para Putin, que passou os últimos 18 anos a personificar tudo, desde o pai extremoso da nação até um judoca James Bond. De forma mais significativa, nunca foi menos credível.

Putin construiu a sua autoridade através do contacto directo com a sociedade russa. Nos primeiros tempos da sua presidência, percorria todos os 11 fusos horários da Rússia prometendo – e muitas vezes cumprindo - crescimento real dos rendimentos, melhores infra-estruturas, e renovação nacional. Com efeito, a recente conferência de imprensa – a 14ª do seu tipo – pareceu-se muito com outro dos frequentemente repetidos desempenhos públicos de Putin: a “Linha Directa”, uma transmissão ao vivo em que responde a perguntas (previamente preparadas) de cidadãos russos.

De forma provavelmente também preparada, as conferências de imprensa incluíam “jornalistas” que tentavam colocar perguntas – e que depois se revelava serem russos comuns que tinham sido enganados por responsáveis corruptos. Um desses personagens lesados recebeu, como resposta às suas queixas, o compromisso pessoal de Putin de que “olharia para o problema”.

Mas, no meio das condições de vida em deterioração e da hostilidade global crescente, as promessas televisionadas de Putin já não enganam ninguém – e não apenas devido à decrescente confiança nos noticiários televisivos (que caiu de 79% para 49% durante a última década). Os russos também têm as suas próprias dúvidas quanto à própria liderança de Putin, como se vê pelo declínio acentuado do seu índice de aprovação, de mais de 76% para 66% nos últimos seis meses. Apenas 56% dos russos dizem que votariam nele se as eleições se realizassem amanhã.

É evidente que isto não é novidade para o Kremlin, que tem tentado alterar as suas tácticas para atrair eleitores. Em vez de contarem com os compromissos pessoais e as representações de Putin, as autoridades têm-se concentrado cada vez mais em indicadores tecnocráticos do desenvolvimento da Rússia, ao mesmo tempo que enfatizam a ameaça representada pelo Ocidente.

Os Estados Unidos, avisam os meios de comunicação controlados pelo Kremlin, estão a abandonar acordos nucleares com décadas de existência, especificamente para poderem atingir a Rússia com armas nucleares. Adicionem-se histórias dos horrores da II Guerra Mundial, e as queixas sobre as condições de vida, espera o Kremlin, parecerão comparativamente insignificantes.

Mas Putin poderá não estar a levar suficientemente a sério o desafio que enfrenta. Durante o seu terceiro mandato presidencial – está actualmente no quarto – dedicou-se mais a defender o seu séquito de acusações de corrupção ou de indiferença que a manter satisfeitos os russos comuns. Ao verdadeiro estilo soviético, continua mais receoso de um golpe palaciano que de uma sublevação pública. A sua vitória esmagadora nas eleições presidenciais do ano passado reforçou esta tendência, ao alimentar o pressuposto clássico do autocrata duradouro: o público adorá-lo-á, independentemente do que acontecer.

O problema com um regime semi-autoritário como o de Putin, contudo, é que o comportamento das pessoas não está completamente sob o controlo do líder. E, na Rússia de hoje, isto estende-se aos meios de comunicação, que noticiam os problemas sociais, e a raiva que provocam, com muito mais frequência – e mais ousadia – do que os forasteiros poderiam esperar.

Na verdade, o estado russo nunca exigiu a alteração, para melhor, da cobertura das questões sociais. Portanto, no que diz respeito a estas questões, o nível da liberdade de expressão está ao nível da   glasnost   (transparência) da década de 1980. Mesmo que os meios de comunicação repitam a versão oficial dos tópicos relativos à Ucrânia e ao Ocidente – para não falar dos protestos populares encabeçados pelo líder da oposição, Alexey Navalny – não deixam de sublinhar a frustração do povo com os salários, as reformas, as regras para habitação e estacionamento, e os impostos, entre outras questões.

Por exemplo, surgiram cabeçalhos sobre a “perda de fé” dos russos no seu governo em jornais russos como o   MK   e o   Kommersant , e em redes televisivas como a NTV. Isto não se trata de uma conspiração anti-Putin; em vez disso, é a comunicação social russa a cumprir a sua função, na medida permitida a uma imprensa semilivre.

O negócio noticioso da Rússia é, afinal, um negócio – e um negócio que precisa de clientes para sobreviver. Por isso, à medida que os meios de comunicação se afastam da propaganda anti-Ocidente e das histórias que glorificam o passado – por reconhecerem, ao contrário do Kremlin, que as mesmas já não interessam aos leitores – não estão apenas a noticiar questões sociais: estão a confeccionar os seus próprios cabeçalhos sensacionais e chamativos sobre o juízo final. O patriotismo pode estar fora de moda, mas o mesmo não acontece com o alarmismo.

Nesse sentido, a imprensa da Rússia lembra o poder potencialmente transformador da   glasnost . Na década de 1980, a cobertura das injustiças sociais e históricas disparou, criando uma clivagem entre os defensores da linha dura, que afirmavam proteger o estado (como o actual Kremlin) e aqueles que pretendiam acelerar a   perestroika   (reestruturação). O golpe falhado dos defensores da linha dura, em 1991, apressou o colapso da União Soviética.

A União Soviética falhou, em parte, devido à distância entre as necessidades básicas das pessoas comuns e a agenda de superpotência do estado, que empobrecia a população. Ao afirmar defender a Pátria, enquanto ignora o seu povo, Putin arrisca-se a cometer um erro semelhante.

O jornal nacional   Vedomosti   – de modo algum, um jornal liberal – relatou recentemente que os russos de hoje não pretendem “sobrevivência, mas sim auto-expressão”. Pretendem “a protecção da lei, respeito, e uma política externa pacífica”. Putin não reparou nisto porque apenas dá instruções à imprensa; não a lê.

NINA L. KHRUSHCHEVA

Nina L. Khrushcheva, autora de Imagining Nabokov: Russia Between Art and Politics e  The Lost Khrushchev: A Journey into the Gulag of the Russian Mind, é professora de Assuntos Internacionais na The New School e membro senior do World Policy Institute.

 

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