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PODERÁ A DEMOCRACIA AMERICANA VOLTAR?

16-11-2018 - Joseph E. Stiglitz

Há muito tempo que os Estados Unidos se consideram um bastião da democracia. Promoveram a democracia em todo o mundo. Lutaram, com custos elevados, pela democracia contra o fascismo na Europa, durante a II Guerra Mundial. Agora a luta regressou a casa.

As credenciais da América como democracia tiveram sempre pequenas imperfeições. Os EUA foram fundados como uma democracia representativa, mas apenas uma pequena fração dos seus cidadãos - a maioria brancos e donos de propriedades - era elegível para votar. Após a abolição da escravatura, os brancos do sul da América lutaram durante quase um século para impedir a votação dos afro-americanos, utilizando impostos de votação e testes de alfabetização, por exemplo, para tornar a votação inacessível aos pobres. Os seus direitos de voto foram garantidos quase meio século após a emancipação das mulheres, em 1920.

As democracias limitam, com razão, o domínio da maioria, razão pela qual elas consagram determinados direitos básicos que não podem ser negados. Mas nos EUA, isso foi virado do avesso. A minoria está a dominar a maioria, com pouca consideração pelos seus direitos políticos e económicos. A maioria dos americanos quer controlo de armas, aumento do salário mínimo, garantia de acesso a seguros de saúde e melhor regulamentação dos bancos que provocaram a crise de 2008. No entanto, todos esses objetivos parecem inatingíveis.

Parte do motivo para isso acontecer está enraizada na Constituição dos EUA. Dois dos três presidentes eleitos neste século assumiram o cargo, apesar de terem perdido o voto popular. Se não fosse pelo Colégio Eleitoral, incluído na Constituição por insistência dos estados escravistas menos populosos, Al Gore ter-se-ia tornado presidente em 2000 e Hillary Clinton em 2016.

Mas a dependência do Partido Republicano da supressão dos eleitores, dogerrymandering   (manipulações tendenciosas dos limites dos distritos eleitorais) e de esforços semelhantes de manipulação eleitoral também contribuíram para garantir que a vontade da maioria fosse contrariada. A abordagem do partido talvez seja compreensível: afinal de contas, a mudança demográfica colocou os republicanos numa desvantagem eleitoral. Uma maioria dos americanos em breve não será branca, e um mundo e uma economia do seculo XXI não poderão ser reconciliados com uma sociedade dominada por homens. E as áreas urbanas onde a maioria dos americanos vive, seja no Norte ou no Sul, aprenderam o valor da diversidade.

Os eleitores nessas áreas de crescimento e dinamismo também viram o papel que o governo pode e tem de desempenhar para promover a prosperidade partilhada. Eles abandonaram as crenças e os costumes do passado, às vezes quase de um dia para o outro. Numa sociedade democrática, portanto, a única maneira pela qual uma minoria - sejam grandes empresas a tentar explorar os trabalhadores e os consumidores, bancos a tentar explorar devedores de empréstimos ou aqueles atolados no passado que tentam recriar um mundo antigo - pode manter o seu domínio económico e político é colocando em causa a própria democracia.

Essa estratégia inclui muitas táticas. Além de apoiarem a imigração seletiva, as autoridades republicanas tentaram impedir que os eleitores democratas se registassem. Muitos estados controlados pelos republicanos instituíram exigências de identificação onerosas nas mesas de voto. E alguns governos locais eliminaram esses eleitores dos registos eleitorais, reduziram o número de mesas de voto ou reduziram as suas horas de funcionamento.

É impressionante o quão difícil é para a América votar, exercer o direito básico de cidadania. Os EUA são uma das poucas democracias a realizar eleições em dias úteis, em vez de ao domingo, tornando-se, obviamente, mais difícil para os trabalhadores votarem. Isso contrasta com outras democracias, como a Austrália, onde os cidadãos são obrigados a votar, ou com alguns estados, como o Oregon, que tornaram mais fácil a votação através do correio.

Além disso, um sistema de encarceramento em massa que continua a ter como alvo os afro-americanos tem historicamente cumprido uma função tripla. Além de fornecer mão de obra barata e reduzir os salários (ainda hoje, como observa Michael Poyker, da Universidade Columbia, cerca de 5% da produção industrial americana é produzida por presidiários), esse sistema foi criado para impedir que os condenados por um crime votassem.

Quando tudo o resto falha, os republicanos tentam amarrar as mãos dos governos eleitos, em parte enchendo os tribunais federais com juízes com quem podem contar para derrubar as políticas às quais os seus doadores e apoiantes se opõem. Importantes livros recentes, como o   Democracy in Chains , da historiadora Nancy MacLean da Universidade Duke, e o   The One Percent Solution , do cientista político Gordon Lafer da Universidade de Oregon, localizam as origens intelectuais e os mecanismos organizacionais do ataque dos republicanos à democracia.

Os ideais americanos de liberdade, democracia e justiça para todos podem nunca ter sido plenamente realizados, mas agora estão a ser alvo de um ataque declarado. A democracia tornou-se regra de, por e para poucos; e a justiça para todos está disponível para todos os que são brancos e podem pagá-la.

É claro que este problema não é só americano. Por todo o mundo, homens fortes com pouco compromisso com a democracia tomaram o poder: Recep Tayyip Erdoğan na Turquia, Viktor Orbán na Hungria, Jarosław Kaczyński na Polónia e, agora, Jair Bolsonaro no Brasil. Alguns, olhando para o passado, dizem que isto também passará. Pensem em todos os ditadores desprezíveis da década de 1930. Pensem naqueles, como Salazar em Portugal e Franco em Espanha, que sobreviveram na era pós-Segunda Guerra Mundial. Já todos fazem parte do passado.

Um momento de reflexão, no entanto, deve lembrar-nos o sofrimento humano dessas ditaduras. E os americanos precisam confrontar o facto de que o seu presidente, Donald Trump, tem ajudado e incentivado a atual safra de ditadores que floresce.

Essa é apenas uma das muitas razões pelas quais é tão importante ter este ano um Congresso Democrático que possa prover um controlo contra as tendências autoritárias de Trump e eleger autoridades locais e estaduais que irão restituir a votação a todos aqueles que tenham direito a ela. A democracia está sob ataque e todos nós temos a obrigação de fazer o que pudermos - onde quer que estejamos - para salvá-la.

Joseph E. Stiglitz

Joseph E. Stiglitz, Prémio Nobel de Economia, é professor universitário na Universidade de Columbia e economista-chefe do Instituto Roosevelt. Seu livro mais recente é Globalização e seus descontentes revisitados: anti-globalização na era do Trump.

 

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