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O martírio de Jamal Khashoggi

19-10-2018 - Daoud Kuttab

 

O diário londrino Al-Araby Al-Jadeed publicou recentemente um cartoon, da autoria do artista jordano Emad Hajjaj, que representava um homem sem cara, envergando um keffiyeh (NdT: espécie de cachecol usado no mundo árabe) vermelho e branco, e movimentando o seu thawb (NdT: túnica comprida usada no mundo árabe) castanho quase como se estivesse a fazer um truque de magia. Açoitados pelo seu movimento, vários papéis flutuam à sua volta. No fundo da moldura, vê-se a mão de outro homem, que veste o que parece ser uma camisa branca, e que aparentemente tem de largar a sua caneta para tentar agarrar algo, e salvar-se. A legenda diz: “O desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi.”

O   cartoon   nomeia a vítima, mas não o agressor. Na verdade, qualquer árabe – aliás, quase toda a gente – sabe exactamente quem foi responsável pelo desaparecimento de Khashoggi: o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman. Mas o facto de um caricaturista bem conhecido ter disfarçado a imagem do culpado diz bastante sobre o medo sentido no mundo árabe por jornalistas independentes. O desaparecimento de Khashoggi apenas veio aumentar a sua ansiedade.

Os países árabes têm uma longa tradição de recompensarem jornalistas que cumprem as regras oficiais, e de castigarem aqueles, como Khashoggi, que se atrevem a dizer as verdades ao poder. Desde as malogradas revoluções da Primavera Árabe – das quais a Tunísia é a única história de sucesso – os cidadãos da região enfrentam uma dura escolha entre regimes Islâmicos radicais e regimes militares. Os esforços para apresentação de alternativas democráticas têm sido reprimidos de forma sistemática.

O descrédito, as restrições, ou o silenciamento aplicados a jornalistas independentes são ferramentas cruciais desta repressão. Os governos autocráticos criam leis e regulamentos que os protegem, e aos seus acólitos, das críticas e da exposição aos meios de comunicação independentes. Defendem que apenas os jornalistas na sua folha de pagamentos – que louvam os seus governantes e atacam os opositores do regime – são legítimos; todos os outros são inimigos do estado.

Este comportamento não está limitado às ditaduras. Mesmo nos Estados Unidos – há muito admirados pela sua sólida imprensa livre, protegida pela Primeira Emenda da Constituição dos EUA, e pelo seu poderoso jornalismo de investigação, que já depôs um presidente – a administração do presidente Donald Trump ataca rotineiramente os jornalistas independentes, apelidando-os de traidores, de agentes a soldo, e de propagadores de “notícias falsas”.

Trump poderá estar apenas a tentar satisfazer o seu eleitorado de direita, e a evitar ser responsabilizado pelos seus inúmeros erros e delitos. Mas os seus ataques à imprensa dos EUA, juntamente com o seu silêncio relativamente a ataques verificados noutras paragens, permitiram encorajar os violadores da liberdade de imprensa em todo o mundo.

Não ajuda que muitos desses violadores da liberdade de imprensa – incluindo a Arábia Saudita – estejam entre os mais próximos aliados da América. Trump tem seguido a demasiado frequente disponibilidade da América para colocar contratos militares lucrativos à frente dos direitos humanos, dizendo que ficaria “muito aborrecido e zangado” se se descobrisse que a Arábia Saudita fora responsável pela morte de Khashoggi, ao mesmo tempo que descartaria a suspensão de contratos militares relevantes.

A Turquia, membro da OTAN como a América, é o líder mundial do encarceramento de jornalistas; porém, a administração Trump só protestou contra a detenção de um pastor americano (recentemente libertado), e isso apenas para acalmar a “direita religiosa” da América (começando pelo Vice-Presidente Mike Pence). As autoridades dos EUA não disseram nada sobre a detenção durante quase dois anos, no Egipto, do jornalista da Al Jazeera, Mahmoud Hussein.

E a administração Trump também não comentou o facto de que, em Março de 2017, os Emirados Árabes Unidos condenaram o jornalista jordano Tayseer al-Najjar a três anos de prisão e a uma multa de 500 000 dirhams dos EAU (aproximadamente 136 000 USD) por causa de uma publicação no Facebook. Mesmo os países que não são aliados especialmente próximos dos EUA – como Myanmar, onde dois jornalistas da Reuters foram condenados a sete anos de prisão – não enfrentam a resistência dos EUA.

Os jornalistas independentes têm um objectivo: encontrarem a verdade e partilhá-la o mais possível. Sempre que os governos conseguirem reprimir esses jornalistas com impunidade, e que outros governos cedam no seu suposto compromisso para com os direitos humanos básicos por motivos políticos ou partidários, a verdade permanecerá oculta, com consequências graves.

Conheço Khashoggi há anos, tanto profissionalmente como pessoalmente. Trata-se de um patriota saudita, que não se opõe ao regime do seu país. É verdade que já criticou políticas, como a guerra desumana que se trava no Iémen, ou o modo como os dirigentes Sauditas ligar com a dissensão. Mas os seus argumentos eram sempre baseados em factos. Não é um dissidente nem um rebelde, mas sim um monárquico que pretende ver o seu país ficar melhor do que está. E, agora, poderá ter pago o preço final por isso.

Para os combatentes árabes pela liberdade, o caminho em frente é longo e traiçoeiro. Com base nos sacrifícios de verdadeiros heróis e de democratas genuínos, jornalistas e desenhadores como Hajjaj continuarão a dizer verdades ao poder, à medida que lutam pelos direitos humanos básicos, como a liberdade de imprensa. Porém, é verdadeiramente inconcebível que estes tenham de ir para a batalha sem o apoio daqueles que referem protegê-los.

Daoud Kuttab

Daoud Kuttab foi professor de Jornalismo na Universidade de Princeton e chefe do comitê de liberdade de imprensa do conselho do International Press Institute. Siga-o no twitter.com/daoudkuttab.

 

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