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Normalizar o aborto

05-10-2018 - Françoise Girard

No mês passado, em Buenos Aires, Elizabeth, de 34 anos e mãe de dois filhos, morreu depois de ter introduzido um ramo de salsa no colo do útero, numa tentativa desesperada de provocar o aborto. Dias antes, o Senado da Argentina rejeitou, por uma margem muito pequena, a legislação que legalizaria o aborto nas primeiras 14 semanas de gravidez. Se essa lei tivesse sido aprovada, Elizabeth poderia estar viva hoje. Em vez disso, ela faz parte das estatísticas preocupantes: uma das mais de 40 mulheres argentinas que morrerão este ano, devido a abortos atabalhoados.

No dia 28 de setembro, ativistas em todo o mundo irão assinalar o Dia Internacional do Aborto Seguro, uma oportunidade para lamentar os que morreram por causa de leis antiaborto opressivas. Mas esse dia é também sobre espalhar uma mensagem em nome da Elizabeth e das outras mulheres como ela: o aborto, ainda que em muitos países seja uma questão política forçada, é simplesmente um facto da vida.

Todos os anos, 25% de todas as gravidezes - cerca de 56 milhões - são interrompidas. Os abortos ocorrem em todos os países e atingem todas as classes socioeconómicas. Nos Estados Unidos, 61% das pacientes que interrompem a gravidez estão na faixa etária dos 20 anos, 59% já são mães e quase dois terços identificam-se com uma religião organizada. Mas o aborto é mais comum nos países em desenvolvimento, onde o acesso a serviços de planeamento familiar é muitas vezes limitado. Na verdade, uns desconcertantes 88% dos abortos, a nível mundial, ocorrem nos Países do Sul.

O aborto é um procedimento seguro que se torna perigoso em qualquer lugar em que seja legalmente restrito. Só cerca de 55% da totalidade de abortos realizados anualmente são seguros e as complicações derivadas de procedimentos perigosos - muitas vezes são as únicas opções disponíveis para as mulheres que vivem em lugares onde os métodos eficazes são penalizados - resultam em cerca de sete milhões de hospitalizações e matam 47 mil mulheres todos os anos.

A luta pelo aborto seguro já tem centenas de anos. Embora os métodos fossem diversos, o aborto era uma prática normal – e frequentemente aceite na China, no Egito, na Grécia e na Roma antigos. Foi somente no século XIX que as elites católicas e coloniais propagaram leis antiaborto, no sentido de controlarem a sexualidade, o corpo e a vida das mulheres.

Mas, ao contrário da opinião popular, a penalização não reduz o número de abortos; apenas faz com que a realização do aborto seja mais perigosa. Na América Latina e nas Caraíbas, onde o procedimento é proibido ou restrito, as taxas de aborto –e as complicações resultantes –estão entre as mais elevadas do mundo. Em contrapartida, na América do Norte e na Europa Ocidental, onde o aborto é legal e amplamente acessível, as taxas de aborto são comparativamente baixas e a segurança é elevada

Além disso, quando o aborto é despenalizado, as taxas de mortalidade diminuem e as lesões maternas desaparecem quase de um dia para o outro. Por exemplo, um ano após a Roménia ter despenalizado o aborto em 1990, a mortalidade materna, diminuiu para metade, enquanto na África do Sul, as mortes caíram a pique 91%, nos primeiros quatro anos depois da aprovação da Lei sobre a Rescisão da Gravidez, de 1996. Em termos práticos, não há nenhuma razão médica que justifique que qualquer mulher tenha de arriscar a sua vida para interromper uma gravidez indesejada.

Impelidos por estas estatísticas, os ativistas dos direitos de todo o mundo exigem mudanças nas leis nacionais do aborto e, desde 2000, mais de 30 países liberalizaram a sua abordagem. Em maio, os eleitores na Irlanda revogaram a proibição do aborto do país, uma vitória significativa numa sociedade profundamente influenciada pela sua fé católica. Até na Argentina, a esperança continua elevada. As sondagens de opinião revelam um forte apoio ao direito ao aborto e a lei que poderia ter salvado a vida de Elizabeth não avançou por apenas sete votos.

De qualquer modo, a luta está longe de acabar. A nível global, a procura na Internet de Misoprostol, um medicamento que as mulheres usam para provocar o aborto de forma segura, está a aumentar. Em África do Sul, apenas cerca de 5% de clínicas e hospitais públicos disponibilizam a realização do aborto e um terço das mulheres ainda nem sabe que o aborto é legal. Enquanto isso, em Marrocos, as mulheres que lutam pelo direito ao aborto são presas e assediadas. E nos EUA, os ativistas estão a preparar-se para um recuo na liberdade reprodutiva, se o candidato ao Supremo Tribunal, Brett Kavanaugh, for confirmado.

A oposição mais feroz ao direito ao aborto começa na Igreja Católica e noutras forças conservadoras, e isso tem consequências diretas tanto para as mulheres como para os sistemas de cuidados de saúde dos seus países. Uma pesquisa recente, levada a cabo pela minha organização, a International Women’s Health Coalition, constatou que mais de 70 jurisdições em todo o mundo –inclusive em 45 estados da América –os profissionais de saúde podem negar às pacientes serviços relacionados com o aborto, tendo como base apenas as crenças pessoais dos médicos.

Estas restrições são inconcebíveis. O aborto faz parte da vida das mulheres. Está na altura de os governos ouvirem os milhões de mulheres que estão a exigir justiça reprodutiva e autonomia corporal. As leis têm de reconhecer e garantir o direito da mulher a ter cuidados de saúde sexuais e reprodutivos. A assistência tem de ser acessível a nível financeiro e médico. E todas as mulheres do mundo independentemente da idade, raça etnia, orientação sexual ou afiliação religiosa –têm de ter acesso a serviços de aborto seguro.

A Elizabeth nunca teve essas oportunidades e milhões de mulheres por esse mundo fora encontram-se na mesma situação. A menos que, e até que, isso mude, qualquer uma delas é uma potencial tragédia.

FRANÇOISE GIRARD

Françoise Girard é presidente da International Women’s Health Coalition.

 

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