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Desculpe, Bernie, precisamos de mudanças radicais

03-08-2018 - Paul Street

Uma das narrativas mais sombriamente engraçadas no atual posicionamento do Partido Democrata hegemônico para as eleições intermediárias de 2018 e para a disputa presidencial de 2020 é a alegação de que a tendência de Bernie Sanders representa uma ameaça “socialista” radical que tornará a competição favorável aos republicanos e a Trump.

Não importa que as políticas progressistas e moderadamente social-democratas que Sanders e seus apoiadores democratas apoiam — Medicare para todos, impostos progressivos, universidades gratuitas, um aumento significativo no salário mínimo federal, a relegalização da organização de sindicatos — tenham um apoio majoritário de longa data entre a população dos EUA.

Não importa que seja precisamente o vazio centrista neoliberal do desastre repleto de dólares que é o atual Partido Democrata corporativo (adequadamente descrito por Sheldon Wolin como “a Oposição Inautêntica” no começo de 2008) que tenha entregado os governos estaduais e federal aos amplamente odiados, radicalmente retrógrados e arquirreacionários (racistas, machistas, nacionalistas-brancos e ecofascistas) republicanos.

Não importa que Sanders se esforce repetidas vezes para proclamar que as mudanças que ele propõe “NÃO são ideias radicais” mas, em vez disso, reformas moderadas.

E não importa que Bernie continue a funcionar como um “cão pastor” eleitoralista para obter votos para a acima mencionada oposição desastrosa e inautêntica — o deprimentemente desmobilizado partido democrata.

“Não seja rude com os nacionalistas-brancos, faça o que Alexandria fez”

Algumas semanas atrás, Sanders disse que não apoiava a postura de ser rude com “as pessoas” quando perguntado sobre incidentes nos quais funcionários do governo Trump foram publicamente assediados devido a sua política brutal de sequestrar crianças imigrantes na fronteira sul dos EUA.

“Não sou um grande fã da atitude de gritar com as pessoas ou ser rude com as pessoas”, Sanders disse à apresentadora Kristen Welker da MSNBC duas semanas atrás. “Penso...” — continuou Sanders com seu sermão — “...que temos um problema e um Congresso que está muito desconectado das opiniões dos estadunidenses. As pessoas têm o direito de ficarem bravas quando o Congresso diminui os impostos dos bilionários e quer cortar programas de alimentação para mulheres grávidas pobres. As pessoas têm o direito de ficarem bravas. É preciso ver isso de uma forma construtiva”.

“Penso que as pessoas têm o direito de ir a um restaurante e jantar”, Sanders continuou a explicar. “É aí que temos que colocar nossos esforços. Eu sei que as pessoas estão bravas. Estão bravas por causa dessas políticas de imigração terrivelmente desumanas. Estão bravas porque não podem pagar pelos remédios que os médicos receitam. Estão bravas por causa da diminuição de impostos dos bilionários. A forma de se lidar com isso é exatamente a forma como Alexandria agiu”.

Sanders estava se referindo a Alexandria Ocasio-Cortez, uma democrata progressista que ganhou a eleição primária do Partido Democrata contra Joe Crowley, representante de Nova York em exercício há dez mandatos.

“Organizem-se no nível de base da população. Ganhem eleições e envolvam-se no processo político”, disse Sanders.

Também não sou fã de descarregar a raiva sobre funcionários públicos horríveis em espaços públicos. Qualquer coisa menos severa que prendê-los e arrastá-los para tribunais populares revolucionários parece algo fraco e infantil para mim.

Ainda assim, achei os comentários de Sanders perturbadores. Foi deprimente e revelador o fato dele colocar operadores nacionalistas-brancos protofascistas no poder com o governo Trump dentro da categoria ampla e geral de “as pessoas” — vocês sabem, gente como a gente, igual a todo mundo, que só está tentando jantar fora.

Se Bernie não entende que essas “pessoas” em particular destoam do conjunto comum da humanidade como agentes de malevolência racista, então é bastante difícil levar muito a sério essa seu chamado à “civilidade”.

“As pessoas” têm o direito de jantar fora

Fico estarrecido que passe pela cabeça de Sanders dizer que “as pessoas têm o direito de ir a um restaurante e jantar” quando estamos falando de crianças e famílias detidas, engaioladas, separadas e aterrorizadas pelas autoridades de fronteira dos EUA. Portanto, “pessoas” — ou seja, funcionários de Trump de alta classe e racialmente privilegiados — “têm o direito” de sair para jantar; é isso mesmo, Bernie? Bem, senador, milhares de pessoas que são imigrantes de pele escura fugindo do terrorismo apoiado pelos EUA e estão presas em racistas celas de retenção estadunidenses não têm o direito de deixar estas instalações opressivas nas quais estão detidas. Muitas delas tiveram seus filhos roubados e enviados a locais distantes dos EUA.

Aliás, quem disse a Bernie que nacionalistas-brancos racistas e nativistas são "pessoas"? Isso me lembra da grande franco-atiradora soviética, Lyudmila Pavlichenko, que matou 309 nazistas alemães que estavam invadindo seu país. Quando Eleanor Roosevelt comentou que Pavlichenko tinha matado centenas de “homens”, a franco-atiradora a corrigiu, destacando que ela atirou em “fascistas”, não em “homens”.

Mantendo as pessoas fora das ruas, arrebanhando-as para as urnas

Bernie Sanders usou a questão da “civilidade” para impor uma falsa dicotomia: ou (1) ser destrutivamente incivilizado por “gritar” e “ser rude” com “as pessoas” (ou seja, com implementadores de políticas violentamente racistas e ecocidas) ou (2) ser “construtivo” ao “organizar-se no nível da base da população”, o que pode ser entendido como envolver-se na política eleitoral dos maiores partidos dos EUA e “ganhar eleições” — fazendo “exatamente o que Alexandria fez”.

O quê? Vocês ainda não ganharam uma eleição primária para o Congresso em um grande partido este ano? Precisam começar a trabalhar, meus caros estadunidenses!

Assim age o não tão “independente” senador de Vermont, continuando a desempenhar seu papel de longa data de tentar manter a ligação mortal e disfuncional dos progressistas com a política restrita e limitada centrada em eleições — e candidatos — da nação. Assim Bernie alimenta o que o grande historiador radical estadunidense Howard Zinn chamou de “a loucura das eleições” que “traga a sociedade inteira, incluindo a esquerda” uma vez a cada dois anos “porque todos crescemos acreditando que votar é crucial para determinar nosso destino, que o ato mais importante que um cidadão pode realizar é ir às urnas”.

“A coisa realmente crítica”, Zinn uma vez escreveu sabiamente, “não é quem está sentado na Casa Branca, mas quem está sentado nas ruas, nas cafeterias, nos salões do governo, nas fábricas; quem está protestando, quem está ocupando escritórios e fazendo atos — essas são as coisas que determinam o que acontece”.

“A única coisa que irá de fato algum dia causar uma mudança significativa”, Noam Chomsky (um apoiador de Sanders, até certo grau) disse a Abby Martin da teleSur English no começo de 2016, “são movimentos populares dedicados e persistentes que não prestem atenção ao ciclo eleitoral”.

Bernie era e continua a ser completamente focado no ciclo de eleições da classe dominante, que é dedicado à noção delirante e empiricamente falsa de que os cidadãos dos EUA dão contribuições significativas para as políticas a serem implementadas ao gastarem três minutos na urna a cada 2 ou 4 anos escolhendo dentre meia dúzia de candidatos previamente selecionados para nós (com exceção de casos comparativamente raros e excepcionais) pela ditadura não eleita e inter-relacionada financeira e imperial da nação. Trata-se de manter as pessoas fora das ruas, onde deveriam estar regularmente se estiverem seriamente decididas a causar mudanças progressistas nesta época de reação violentamente racista, classista, machista e ecocida. Trata-se de vender aos cidadãos a falsa esperança nos políticos — a promessa “picareta” de que todos ou a maioria de nossos esforços deve ser usada para arrebanhar pessoas para as urnas para que levem um momento penosamente breve e friamente limitado (três minutos a cada dois ou quatro anos) para marcar a cédula a fim de que os senhores certos possam nominalmente nos governar (os verdadeiros governantes estão em suítes corporativas ou financeiras, não nos escritórios dos eleitos). Essa é a mensagem básica de “cão pastor”.

Sem reviravoltas

Seria a participante dos Socialistas Democráticos dos EUA Alexandria Ocasio-Cortez diferente das candidaturas gerais de políticos corporativos dos grandes partidos, incluindo “pessoas” como Crowley? Com certeza. Absolutamente. Assim como Sanders. Não há discussão sobre isso. Se eu morasse no 14º distrito congressional de Nova York e estivesse registrado lá (o que é improvável) como um democrata (Nova York não tem primárias abertas), eu certamente gastaria três minutos para votar em Ocasio-Cortez na primária. Eu faria isso para (a) ajudar a tirar do poder o democrata corrupto, imperialista corporativo de alto escalão Crowley e seus apoiadores automáticos democratas locais e (b) demonstrar meu apoio ao programa político doméstico progressista e social-democrata de Ocasio-Cortez, incluindo Medicare para todos, universidades gratuitas, e a extinção da racista-nativista agência de Serviços de Imigração e Alfândega (ICE). Eu também seria motivado pelo declarado “socialismo” de Ocasio-Cortez e sua preocupação com a desigualdade de classe e por sua história como alguém com experiência recente em um trabalho real da classe trabalhadora (garçonete) e em movimentos sociais e de protesto (por exemplo em Standing Rock).

Ainda assim, não vi reviravoltas por causa de sua vitória. Não posso concordar com Sanders ao classificar “Alexandria” como o santo graal da alternativa nacional e “de base” a “ser rude com as pessoas”.

Isso devido a cinco razões. Primeiramente, Ocasio-Cortez ganhou com uma participação incrivelmente baixa (13%), algo que fica bem longe de uma vitória esquerdista esmagadora e reflete peculiaridades locais na operação da máquina democrata da cidade de Nova York.

Em segundo lugar, como o veterano estrategista, ativista e comentarista político urbano da esquerda Bruce Dixon observou no Black Agenda Report, “Joe Crowley praticamente abandonou seu assento no Congresso: após 10 mandatos e com muitos amigos no ambiente corporativo, Joe Crowley sabe que pode começar ganhando sete dígitos, pelo menos seis a doze vezes seu salário como congressista mais extras, como lobista. Essa deve ter sido uma motivação poderosa para não fazer muita campanha, e outra circunstância única nesta disputa em particular”.

Em terceiro lugar, a vitória de Ocasio-Cortez em parte refletiu uma anomalia demográfica (racial e etno-cultural) e partidária combinada: a presença demasiadamente longa de um político branco da máquina democrata liderando um distrito recentemente reformado racial e etnicamente e agora em sua maioria não-branco e quase majoritariamente latino onde o partido democrata fracassou em conseguir um candidato neoliberal etnicamente de cor — o tipo seguro de político latino ou negro que o segundo partido corporativo e imperial da nação desenvolveu ao longo dos distritos congressionais urbanos de maioria formada por minorias. Como Danny Haiphong observou no American Herald Tribune, “o distrito 14 de Nova York é um dos poucos [distritos congressionais urbanos de minorias] que sobraram onde políticos neoliberais negros e de outras etnias de pele escura não dominam o cenário político. Será difícil replicar a vitória de Ocasio-Cortez por todo o país porque políticos negros neoliberais em outros distritos estão protegidos pelas políticas de representação”.

Em quarto lugar, como Dixon observou, “enquanto que não há instituições sob as leis e costumes dos EUA que possam manter candidatos e políticos eleitos esquerdistas ligados a eleitorados e organizações de esquerda...há infinitos mecanismos e pressões institucionais operando dentro do Partido Democrata com o objetivo de direcionar políticos eleitos progressistas para a direita”.

Como congressista (sua vitória na eleição geral está praticamente garantida no 14º distrito fortemente azul), a inspiradora Ocasio-Cortez enfrentará uma enorme disparidade de poder entre a pressão de base local vinda de baixo e a pressão nacionalmente mobilizada monopolizadora, imperial e partidária vinda de cima para baixo.

Os democratas da CIA

Em quinto lugar, Haiphong estava certo em observar que os desanimadores democratas estão completamente acabados como um meio de transformação progressista:

“O Partido Democrata é incapaz de se reformar e serve não como um veículo de mudança mas como um cemitério de movimentos sociais. Ele será também o cemitério dos princípios de Ocasio-Cortez se não construirmos instituições e organizações independentes capazes de levar o ânimo popular ocorrido durante sua campanha para longe dos cavadores de covas corporativos do Partido Democrata... Precisamos construir uma alternativa política aos democratas porque quando se trata do Partido Democrata, não há nada que reste para que se possa fiscalizá-lo. Jovens e trabalhadores de esquerda devem se libertar dos grilhões que os mantêm acorrentados ao Partido Democrata. Os movimentos sociais são os únicos veículos que podem convencer as pessoas em dificuldades neste país de que o Partido Democrata responde somente a Wall Street”.

(Bem - responde também às estruturas de riqueza e poder relacionadas e sobrepostas no Vale do Silício, Hollywood e no complexo militar-industrial).

Tenho ouvido baboseiras sobre supostas chances de uma conquista de hegemonia e reforma progressista do Partido Democrata desde que eu estava na escola na original Chicago do prefeito Daley (o mais perto a que já se chegou disso realmente ocorrer foi durante o mandato de prefeito de Chicago de Harold Washington de 1983-1987 — uma cidade durante somente quatro anos, com qualificações estritas e com superação completa por parte dos mandatos neoliberais de longa duração dos democratas corporativos de direita Richard Daly II e Rahm Emmanuel).

Os democratas estarão usando uma grande safra de candidatos que são ex-oficiais de inteligência e ex-militares neste mês de novembro — todos fortes defensores de uma política externa estadunidense agressivamente imperialista dedicada à completa execução da nova Guerra Fria com a Rússia. Patrick Martin do World Socialist Website explica:

“a campanha anti-Rússia lançada pelos democratas tem...como meta pressionar o governo Trump a intensificar bruscamente a guerra na Síria e adotar uma política mais agressiva contra a Rússia. Ao mesmo tempo, ela foi usada como uma justificativa para uma campanha massiva e coordenada para censurar a internet. A manipulação dos algoritmos de pesquisas e feeds de notícias pelo Google e o Facebook será seguida de esforços mais diretos para suprimir publicações de esquerda, antiguerra e socialistas.”

“A campanha também serviu para posicionar os democratas como o partido que defende a 'comunidade de inteligência' em seu conflito com a Casa Branca de Trump. Isso agora está sendo suplementado, em vista das eleições intermediárias de novembro, por um fluxo de candidatos para nominações congressistas democratas em distritos competitivos vindos massivamente das fileiras da CIA, dos militares, do Conselho de Segurança Nacional e do Departamento de Estado.”

“A conduta do DNC demonstra o caráter reacionário e fracassado das alegações de grupos liberais e da pseudoesquerda — todos mantendo completo silêncio sobre a isolação e perseguição a Julian Assange — de que a eleição de um Congresso controlado por democratas é a forma de lutar contra Trump e os republicanos. A verdade é que a classe trabalhadora se confronta nestes partidos com dois inimigos políticos implacáveis comprometidos com a guerra, a austeridade e a repressão” (ênfase adicionada).

Com todo respeito aos progressistas e social-democratas (“socialistas democráticos”) que estão concorrendo nas primárias democratas este ano, é para esta lista ampla imperialista de “democratas da CIA” que Bernie Sanders estará pedindo votos em massa aos cidadãos neste outono. Isso mostra Sanders desempenhando seu papel bem estabelecido de “cão pastor” principal para trazer as pessoas para as urnas não só para o principal partido de guerra “mais à esquerda” da nação, mas também e mais amplamente para a “loucura da eleição” contra a qual Zinn tentou nos advertir.

Sem atalhos eleitorais: o real problema a ser enfrentado

É bom que Alexandria Ocasio-Cortez tenha vencido a máquina corporativa branca folgada democrata que é Joe Crowley. Mas seu triunfo localmente distintivo não é um argumento convincente para os progressistas de esquerda centrarem seu ativismo em torno de uma corrida eleitoral frenética em direção àquele “caixão de consciência de classe” (historiador Alan Dawley) que são as urnas eleitorais estadunidenses. Querem votar? Ótimo. Leva dois minutos. Não há atalhos, eleitorais ou de outros tipos, para uma política mais séria e urgente e o trabalho de organização difícil, diário e detalhista de se construir uma verdadeira esquerda estadunidense — algo que manteria uma distância saudável dos cantos de sereia sedutores das extravagâncias eleitorais dos grandes partidos restritos e limitados que nos são vendidos como “a política”, a única política que importa.

E não há grande virtude em descrever os progressistas como “não radicais”. Desculpem-me, mas o diagnóstico atual é catastrófico. Precisamos de radicalidade — mudanças radicalmente democráticas — para substituir o domínio racista, imperialista, classista e atualmente completamente ecocida do capital pelo poder do povo. “O real problema a ser enfrentado”, como escreveu o realmente socialista democrático e ativista de movimento social não eleitoral Dr. Martin Luther King Jr. em seu último ensaio publicado, “é a radical reconstrução da sociedade em si”. A avaliação de King estava completamente correta em 1968, quando milhares de soldados estadunidenses foram brevemente desviados da “crucificação do sudeste da Ásia” (frase de Chomsky na época) na forma de assassinatos em massa por parte do império estadunidense para a repressão sangrenta de rebeliões negras nos guetos dos EUA. É ainda mais precisa 50 anos depois, em um tempo em que três estadunidenses absurdamente ricos (Jeff Bezos, Bill Gates e Warren “minha classe está ganhando a luta de classes” Buffet) possuem a mesma riqueza que a metade mais pobre da população dos EUA e quando o sistema de lucros viciado em crescimento - e acumulação - está ainda mais claramente levando a humanidade rumo a cair de um penhasco ecológico.

*Tradução: Nina Torres Zanvettor | Publicado originalmente no Counter Punch

 

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