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Cuba descobre a internet

24-06-2016 - Najla Passos

No último reduto socialista das Américas, o acesso à rede mundial é uma atividade pública, efetivada naquele que é o espaço do povo por excelência: "a praça".

A noite cai tarde em Havana nesta época do ano, para mais de 20h. O espetáculo é de tirar o fôlego. Do alto do Morro de La Cabaña, o Cristo abençoa a recém-eleita cidade maravilha do mundo. Na orla, o vai e vem dos carros clássicos norte-americanos dos anos 1950 colore os 8 km do Malecón, a mureta de corais construída na primeira metade do século passado para proteger a capital cubana dos humores do mar do Caribe. Todo iluminado, o imponente Hotel Nacional conta histórias de um passado glorioso e promete um futuro cheio de dólares do turismo, considerado hoje o carro-chefe da economia local.

Nas entranhas da capital cubana, outras paisagens encantam os sentidos. A mais inusitada delas, sem dúvida alguma, é o apagar e acender de luzes frenéticas que toma conta dos mais badalados espaços públicos. São celulares, tablets e notebooks em torno dos quais se reúnem famílias inteiras para matar as saudades dos parentes distantes, cooperados em busca de contato com os turistas, jovens de todas as idades ávidos por informações.

Na capital do último reduto socialista das Américas, o acesso à rede mundial de computadores não é uma atividade privada, restrita à intimidade das casas e dos escritórios como conhecemos no mundo capitalista, mas sim uma experiência pública, efetivada naquele que é o espaço do povo por excelência: a praça.

As razões, entretanto, não são puramente ideológicas: Cuba só passou a oferecer o serviço em maior escala em julho do ano passado, quando o presidente Raúl Castro inaugurou 34 zonas de Wi-Fi em Havana e nas capitais das outras 14 províncias do país. Entre novembro e dezembro, foram mais 19. Na esteira da retomada das relações diplomáticas com os Estados Unidos e da explosão do turismo que isso gerou, o governo investiu nos sistemas de rádio que sustentam o Wi-Fi nas ruas.

 

O uso da internet nas residências ainda é proibido e, até o ano passado, estava restrito às universidades, escolas, embaixadas, alguns órgãos públicos e hotéis de luxo. Um cabo subterrâneo puxado da Venezuela garantia uma conexão lenta com o resto do planeta. E para poucos. Dados da Oficina Nacional de Estadística e Información de Cuba apontam que, até 2013, existiam apenas 1.014 computadores no país. Os usuários da rede mundial eram só 2,9 mil dos 11,2 milhões de cubanos.

Na Cuba das contradições entre o ideário comunista da igualdade de oportunidades para todos e a falta de tecnologia imposta pelos 57 anos de bloqueio económico norte-americano, a internet ainda é uma novidade à qual a maioria da população só agora começa a ter acesso.

Há inconvenientes, claro. Na primeira semana de junho, a passagem de um tornado pela Flórida, nos Estados Unidos, resultou em chuvas intensas na ilha caribenha, cuja capital fica a apenas 156 Km de Key West, o ponto mais próximo do país vizinho. Mas o povo ávido pela internet continuava nas praças, debaixo de guarda-chuvas, sacolas plásticas, todo tipo de improvisos. O fluxo de gente nas zonas de Wi-Fi, aliás, começa nas primeiras horas do dia e se estende até a alta madrugada. Ninguém parece se preocupar com segurança, algo no mínimo inusitado para os brasileiros que convivem com assaltos em ambientes bem menos expostos.

“Havana é uma cidade muito segura. Nossos problemas são outros”, garante o professor de salsa, Jorge Felix, que, nas horas vagas, aborda turistas no Malecón em busca de trocados em moeda forte. Felix porta um aparelho celular que, no Brasil, seria considerado de segunda linha. Utiliza-o basicamente para fazer e receber ligações. “A internet é muito cara e eu ainda nem sei como funciona”, admite.

Assim como para ele, o preço do serviço é proibitivo para a maioria dos cubanos. A estatal de telecomunicações, a Etcsa, vende um cartão que dá direito a uma hora de navegação por 2 Pesos Conversíveis (CUCs), a moeda criada para sustentar o turismo crescente no país. E o CUC, hoje, está pareado como Euro, o que significa um custo de cerca de R$ 8,5 por hora de serviço. Nos hotéis de luxo, os turistas pagam ainda mais caro por uma hora de internet: em média 5 CUCs ou cerca de R$ 22,5.

Quem recebe mesada dos parentes que vivem no exterior ou quem trabalha com turismo e ganha em CUCs consegue financiar o serviço, ainda que de forma comedida. É o caso do guia profissional Armando Gonzalez, que precisa da internet para se comunicar com os turistas que desejam contratá-lo desde seus países de origens. Porém, para não estourar o orçamento, a utiliza única e exclusivamente para conferir o e-mail. Entre as visitas a um e outro monumento, aproveita as zonas de Wi-Fi para atualizar os negócios.

A situação é mais complicada para os funcionários públicos que recebem seus salários em Peso Cubano, a outra moeda nacional utilizada nas relações com o Estado e exclusivamente entre cubanos. Como 1 CUC vale 24 Pesos Cubanos, todos os serviços oferecidos em Cuba cobrados na moeda turística acabam excessivamente caros para quem recebe seu sustento com base no segundo.

Daniela Gonzalez y Saad e a prima Maria Mercedes Blanco Grant, ambas de 11 anos, aproveitam o domingo para fazer selfies em frente aos principais monumentos do mais famoso bairro da capital cubana: Havana Vieja. O celular, Daniela pediu emprestado à mãe, uma médica de família – portanto, funcionária pública - que necessita do aparelho para atender prontamente seus pacientes.

Mas as selfies são apenas para elas mostrarem para familiares e amigos. Nenhuma das duas nunca acessou a internet. E, como desconhecem as suas possibilidades, não sentem falta dela. “Eu tenho curiosidade, mas prefiro fazer outras coisas”, argumenta a menina. “Nós gostamos de ir a escola, dançar, passear e assistir novelas brasileiras”, complementa Maria Mercedes. A preferida da dupla é Avenida Brasil, lançada pela TV Globo em 2012. “É muito triste ver crianças vivendo em lixões”, comenta Daniela.

Controle ideológico?

Para o jornalista Boris González Arenas, opositor ao regime, o alto custo da internet em Cuba não tem relação com a falta de infraestrutura provocada pelo embargo económico. Para ele, esta é uma forma de o Estado manter seus cidadãos sob controle ideológico, já que a imprensa cubana é praticamente toda ela estatal. As exceções são os blogs e portais mantidos por jornalistas dissidentes, como Ioani Sanchez e o próprio Boris, além de revistas impressas como a Palavra Nova e a Espaço Laico, ambas da Igreja Católica, que fazem críticas pontuais ao sistema.

“Após 57 anos de regime, o cubano se tornou um analfabeto político e é assim que o Estado quer que ele permaneça”, critica Arenas, que foi demitido da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, município a 26 Km de Havana, após ser preso em um protesto contra o governo e publicar artigos contrários ao sistema na imprensa estrangeira, inclusive na revista brasileira Época, do Grupo Globo.

De acordo com ele, a falta de intimidade do povo com a internet prejudica até mesmo a tão propagada qualidade da educação cubana. “O regime diz que Cuba fornece uma boa educação. O problema é que é uma boa educação para o século passado. Hoje, é inadmissível que um profissional de qualquer área se forme com tamanha falta digital”, acrescenta.

A deputada da Assembleia Nacional Popular, membro do Partido Comunista e directora do Instituto Cubano de Amizade com os Povos (Icap), Kenia Serrano Puig, contesta a crítica de que o governo quer evitar que o povo tenha acesso à informação do mundo capitalista. Segundo ela, se assim o fosse, o governo não ofereceria o ensino de várias línguas estrangeiras nas escolas e até na mídia. “Se tivéssemos medo, não ofereceríamos inglês pela TV”, retruca.

Um dos responsáveis pela retomada das relações diplomáticas do Brasil com Cuba, em 1986, na esteira da reabertura democrática que sucedeu os 20 anos de ditadura militar, o diplomata aposentado Jorge Ferreira Diaz rechaça a crítica de que o cubano seja um analfabeto político ou tecnológico. Segundo ele, em Cuba não existem analfabetos, a educação é de qualidade e o povo participa ativamente de todo o processo político.

Além disso, garante que desde os anos 1990, quando ele era membro do Comité Central do Partido Comunista e diretor do Comité em Defesa da Revolução, já assistia o ex-presidente Fidel Castro inaugurar salas de informáticas nas universidades e escolas. “De facto, nós não priorizamos o acesso à internet, mas o cubano tem, sim, conhecimento digital”, afirma.

Najla Passos

 

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