Londres, a Meca dos corruptos
03-04-2015 - George Monbiot (*)
Como o sistema financeiro internacional converteu a capital britânica no centro global de reciclagem da riqueza de ditadores e do crime organizado.
A conta não fecha. Quase todos os dias, jornais e televisões inglesas estão repletos de histórias que cheiram a corrupção. Contudo, no ranking de corrupção da ONG “Transparência Internacional”, a Grã-Bretanha ocupa o 14º lugar entre 177 nações (1) – significando que estaria entre as nações mais bem geridas da Terra. Ou os 13 países que vêm antes da Grã-Bretanha são espectacularmente corruptos, ou há algo errado com esse ranking da “Transparência Internacional”.
Sim, o problema é o índice. As definições de “corrupção” de que se serve são as mais estreitas e selectivas. Nos países ricos, práticas comuns que sem dúvida poderiam ser consideradas corruptas são simplesmente excluídas; já práticas comuns em países pobres são enfatizadas.
Esta semana foi publicado um livro bastante inovador, editado por David Whyte: How Corrupt Is Britain? [Quão Corrupta é a Grã-Bretanha?] (2). Deveria ser lida por todos aqueles que acham que Grã-Bretanha merece a posição em que aparece no ranking da “Transparência Internacional”.
Existiria ainda um sector bancário comercial na Grã-Bretanha, não fosse a corrupção? Pense na lista dos escândalos: pensões subfacturadas, fraudes hipotecárias, o embuste do seguro de protecção de pagamentos, a manipulação da taxa interbancária Libor, as operações com informações privilegiadas e tantos outros. Depois, pergunte-se se espoliar as pessoas é uma aberração – ou o próprio modelo de negócio.
Nenhum dirigente de banco foi indiciado, sequer desqualificado ou demitido por práticas que contribuíram para desencadear a crise financeira: a legislação que os teria coibido ou enquadrado em crimes já havia sido paulatinamente esvaziada, antes, por sucessivos governos.
Um ex-ministro do actual governo britânico dirigia o banco HSBC (2) quando este praticava sistematicamente crimes de evasão fiscal (3) e lavagem de dinheiro do narcotráfico, além de garantir serviços a bancos da Arábia Saudita e Bangladesh ligados ao financiamento do terrorismo (4). Ao invés de processar o banco, o director do Controlo Fiscal do Reino Unido passou a trabalhar para ele, ao se aposentar (5).
A City de Londres, que opera com o apoio dos territórios britânicos de além-mar e postos avançados da Coroa, é líder mundial dos paraísos fiscais, controlando 24% de todos os serviços financeiros (6) oferecidos offshore.
A cidade oferece ao capital global um sofisticado regime de sigilo, dando assistência não apenas a sonegadores de impostos, mas também a contrabandistas, fugitivos de sanções e lavadores de dinheiro. Como disse a juíza de instrução francesa Eva Joly, ao queixar-se que a City “nunca forneceu sequer uma ínfima evidência útil a qualquer magistrado estrangeiro” (7).
Reino Unido, Suíça, Singapura, Luxemburgo e Alemanha estão todos entre os países menos corruptos na lista da Transparência Internacional. Mas figuram também na lista da Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network) como administradores dos piores regimes sigilosos de investimento e paraísos fiscais (8). Por alguma estranha razão, nada disso é levado em conta para definir o ranking da ONG Transparência Internacional.
A Iniciativa de Financiamento Privado (Private Finance Initiative) tem sido usada por sucessivos governos britânicos para iludir os cidadãos quanto à extensão dos seus empréstimos, enquanto canalizam dinheiro público para corporações privadas. Envolta em segredo, recheada de propinas ocultas (9), a IFP tem fisgado hospitais e escolas sempre com dívidas impagáveis, enquanto impede que a população controle os serviços públicos.
Espiões do Estado lançam-se à vigilância (10) em massa, ao mesmo tempo em que a polícia trabalha servindo-se de identidades de crianças mortas, mente em tribunais para fornecer provas falsas e incita crianças ao activismo extremista, além de infiltrar-se em grupos pacíficos, tentando destruí-los (11). As forças policiais já mentiram sobre o desastre de Hillsborough (12); já protegeram pedófilos activos (13) inclusive Jimmy Savile e, como hoje se afirma, toda uma gama de dirigentes políticos suspeitos também do assassinato de crianças. Savile foi protegido também pelo Serviço Nacional de Saúde (National Health Service) e pela BBC – que demitiu a maioria dos que tentaram expô-lo (14) e promoveu os que tentaram perpetuar o ocultar dos factos.
Há o problema de intocado sistema de financiamento político, que permite a compra dos partidos (15) pelos mais ricos. Há o escândalo das escutas telefónicas e dos jornais que subornam policiais; da privatização dos Correios britânicos, o Royal Mail (16), vendido a preços insignificantes; o esquema da “porta giratória”, que permite a empresários e empregados de grandes empresas, depois de eleitos, ficar em posição de redigir leis que defendem seus próprios interesses ou dos respectivos patrões; o assalto à segurança social e aos serviços prisionais, por empresas privadas terceirizadas; a fixação, por empresas, do preço da energia; o roubo diário perpetrado pela indústria farmacêutica, e outras tantas dúzias de casos semelhantes. Nada disso é corrupção? Ou são operações ‘sofisticadas’ demais para serem expostas sob o seu verdadeiro nome, “corrupção”?
Entre as fontes usadas pela Transparência Internacional para produzir seu ranking estão o Banco Mundial e o Fórum Económico Mundial. Confiar no Banco Mundial para aferir corrupção é como confiar em Vlad, o Empalador, para aferir direitos humanos. Orientado pelo princípio um dólar - um voto, controlado pelas nações ricas e actuando nas nações pobres, o Banco Mundial financiou centenas de elefantes brancos que enriqueceram enormemente as elites mais corruptas e beneficiaram capitais estrangeiros (17), ao mesmo tempo em que expulsava pessoas das próprias terras e deixava países afogados em dívidas impagáveis. Para espanto geral, a definição do Banco Mundial para a corrupção é tão limitada que não considera esse tipo de prática.
E o Fórum Económico Mundial estabelece sua escala de corrupção a partir de uma pesquisa que consulta executivos mundiais (18) — precisamente eles, cujas empresas são beneficiárias directas do tipo de práticas que estou listando nesse artigo. As perguntas se limitam ao pagamento de propinas e à aquisição corrupta de fundos públicos por interesses privados (19), excluindo o tipo de corrupção que prevalece nas nações ricas. Quando entrevista cidadãos comuns, a Transparência Internacional segue a mesma linha: a maior parte das perguntas específicas concerne ao pagamento de propinas (20).
Quão corrupta é a Grã Bretanha? Tão estreitas concepções de corrupção são parte de uma longa tradição de retratá-la como algo confinado a países fracos, que precisam ser salvos por “reformas” impostas pelos poderes coloniais e, mais recentemente, organismos tais como Banco Mundial e FMI. Essas “reformas” significam austeridade, privatização, terceirização e desregulamentação. Elas tendem a sugar dinheiro das mãos dos pobres para as mãos das oligarquias nacionais e globais.
Para organizações como o Banco Mundial e o Fórum Económico Mundial, há pouca diferença entre o interesse público e os interesses das corporações globais. O que pode parecer corrupção de qualquer outra perspectiva é visto por eles como fundamentos económicos. O poder das finanças globais e a imensa riqueza da elite global estão fundadas em corrupção, e os beneficiários têm interesse em enquadrar a questão para desculpar-se. Sim, muitos países pobres sofrem o flagelo do tipo de corrupção que é o pagamento de propinas a servidores públicos. Mas o problemas que atormentam a Inglaterra são mais profundos.
Quando o sistema já pertence à elite, propinas são supérfluas.
__
(*) George Monbiot é jornalista, escritor, académico e ambientalista do Reino Unido.
NOTAS
1. https://www.transparency
2. http://www.plutobooks.com
3. http://www.theguardian.com
4. http://www.hsgac.senate
5. http://www.theguardian.com/
6. John Christensen, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London
7. Nicholas Shaxson, 2011. Treasure Islands: Tax Havens and the Men Who Stole the World. Random House, London. http://
8. http://www
9. http://www.theguardian.com
10. http://www.theguardian
11. http://www.theguardian
12. Sheila Coleman, 2015, in David Whyte (ed). How Corrupt is Britain? Pluto Press, London
13. http://www.theguardian
14. http://www.theguardian
15. http://www.theguardian.
16. http://www.theguardian
17. http://www
18. http://www3.weforum.org
19. http://www.ticambodia.org
20. http://www.transparency
Tradução: Vila Vudu
Publicado em outraspalavras
Voltar |