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As chamas do inferno, Podemos e a economia

12-12-2014 - Luis García Montero*

Esta ordem económica é miserável, desigual, injusta, homicida, egoísta, cruel, mas, se vocês tentarem mudá-la serão perseguidos pelos mercados.

Soam os alarmes toda vez que alguém se atreve a formular um programa para mudar o actual estado da realidade económica. Os comentaristas oficiais se dividem entre o desprezo, a ameaça e o medo. Mas a maioria dos argumentos podem se resumir em uma profecia: se alguém se atreve a colocar em dúvida a ordem estabelecida, cairá uma praga maligna sobre todos nós.

É preciso perguntar imediatamente sobre o presente para aqueles que enxergam a catástrofe no futuro. O que vocês acham do que acontece hoje? Já não parece uma catástrofe? Porque se trata, na verdade, de buscar uma indefinição diante de injustiça, de admiti-la como um mal inevitável ou de se comprometer com a busca de uma solução.

E ao olharmos para o que acontece será sentimental e intelectualmente alarmante o panorama do “normal” e do “pragmático”, ou seja, do “não utópico”. A privatização da política nas mãos das elites económicas cancelou a soberania civil. As decisões sobre nossa vida não são tomadas nos parlamentos, mas em escritórios de especulação que existem à margem da vontade popular. A democracia – como conceito – já faz parte da melancolia. O descrédito dos políticos não depende somente de suas corrupções, mas da inutilidade com que eles se apresentam diante da sociedade. Na verdade, é um disparate pagar um salário de motorista quando já se vendeu o carro ou manter uma estrutura política quando as decisões são tomadas do outro lado e por pessoas que sequer votam.

Do ponto de vista sentimental, é difícil manter dignidade. O crescimento da miséria, a pobreza infantil, a brecha entre ricos e pobres, a crueldade dos despejos, a liquidação dos serviços públicos e a destruição do mundo trabalhista geraram a exploração em níveis deploráveis. A catástrofe é agora. Tornam-se cúmplices dela quem tenta manter a ordem estabelecida a custo de injectar medo na sociedade e de profetizar as futuras chamas do inferno a cada vez que os políticos se atrevem a fazer mudanças.

Durante séculos, a ameaça proferida do poder foi o inferno. Quando alguém tentava trabalhar de maneira distinta daquela estabelecida pela hierarquia, centenas de ministros e sacerdotes ameaçavam com o castigo de Deus. As superstições religiosas do medo provocaram um estranho paradoxo: pediam amor e respeito para Deus pelo mecanismo de transformá-lo em um canalha. Os que ameaçam com o inferno não oferecem a perspectiva do amor, mas o pânico a um poder terrível capaz de nos torturar. Boa parte dos sermões exigem amor por um torturador.

Agora acontece o mesmo com as superstições económicas. Esta ordem é miserável, desigual, injusta, homicida, egoísta, cruel (aí estão os dados), mas, se vocês tentarem mudá-la serão perseguidos pelos mercados ou pelo Banco Central Europeu. Muitos dos autores de sermões modernos se mostram orgulhosos de serem sacerdotes de um sistema explorador. Em nome de um deus terrível, desprezam as medidas propostas pelos economistas dispostos a mudar as coisas.

As catástrofes que eles anunciam são a melhor prova de que estes sacerdotes do neoliberalismo servem a um canalha: o capitalismo desalmado.

As ideias económicas de Viçen Navarro e Juan Torres anunciadas no documento do Podemos não são novas para os que conhecem os livros por eles publicados na última década. A novidade é que uma força política tenha solicitado a colaboração destes dois professores. Mais do que suas ideias, o que talvez irrite mais é que agora saem do âmbito académico para chegar a um partido com a possibilidade de acção. E o que está sobre a mesa é que, diante da privatização da política em favor da economia especulativa, é possível e necessário politizar a economia em favor das pessoas. Ou seja: colocar o dinheiro ao serviço dos seres humanos, em vez de os seres humanos ao serviço do dinheiro.

É necessário exigir dos que classificam tal atitude como utópica que opinem sobre essa catástrofe do presente. Porque, tal e como as coisas estão, parece inadmissível se deixar levar pela inércia do que está estabelecido, renunciando à realização de medidas decisivas contra a miséria e a actual exploração.

É preciso perder o respeito a qualquer senhor que nos ameace com os grandes castigos de seu inferno se decidimos lhe contrariar. Mercados e grandes fortunas dizem: como você não deixa que a gente continue te explorando, vamos te castigar de forma cruel. Somos regidos pelo senso comum de ladrões de bairro, de chantagistas mafiosos.

*Luis García Montero (Granada, 4 de Dezembro de 1958) é uma das principais figuras da actual poesia espanhola. É colunista regular do Público.es

 

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