As dez ''verdades'' do acordo da Argentina com o FMI: versão do próprio Fundo?
04-02-2022 - Jorge Marchini e Aram Aharonian
Sem muita vergonha, o governo argentino divulgou “As 10 verdades do acordo com o FMI”, texto que parece ter sido escrito pelos especialistas comunicadores do próprio Fundo Monetário Internacional, com muita experiência em mascarar as consequências de seus “convénios” de espoliação.
O decálogo parece esboçar um feito heróico, que deixa uma lição para todos: não há outro caminho senão cumprir as condições do FMI. Em outras palavras, “abandone toda a esperança”. Afirma que o país tinha “uma dívida impagável, e agora temos um acordo razoável. Com este acordo podemos crescer, honrar nossas obrigações e tornar a Argentina mais justa”. Frases curtas, sem maiores explicações: desprezo pela capacidade dos cidadãos de entender do que se trata, um destino que não pode ser adiado.
De acordo com o cronograma actual, a Argentina deve pagar 19 bilhões de dólares em 2022, um valor que não pode encarar. Por isso, o programa que o Governo pretende acordar com o FMI adia o reembolso do empréstimo até 2026, quando poderia ser outro o presidente.
Os especialistas estão particularmente impressionados com o ponto seis do decálogo governamental, que afirma que se baseia na “confiança do mundo em nossas capacidades”. O que chama a atenção é que exactamente o mesmo argumento foi usado pelo FMI para justificar o crédito recorde de 57 bilhões de dólares da Argentina ao governo de Mauricio Macri.
O governo recorre aos mesmos argumentos que foram levantados em 2018 pelo FMI para justificar o “apoio à Argentina”. Será então que o acordo na época não foi tão ruim, como disseram o presidente Alberto Fernández e também a vice-presidente Cristina Kirchner, durante a campanha eleitoral e em inúmeros discursos?
Ou será que a verdade é a que muitos temem: que o actual governo decidiu seguir o mesmo caminho do governo neoliberal de Macri, mas com muito mais dureza, como foi apontado pelos auditores do FMI.
Pode-se entender que um governo que se define como peronista, como progressista, tem dificuldade em encontrar 10 justificativas para essa mudança. O primeiro ponto, por exemplo, “para pagar é preciso primeiro crescer. Por isso, fechamos um acordo que nos permitirá sustentar o crescimento e o caminho do desenvolvimento com inclusão”. A realidade contradiz o exposto: primeiro você paga e depois vai ver se pode haver crescimento e/ou desenvolvimento.
E continua com as falácias e meias-verdades: “é um acordo que preserva os interesses dos argentinos, que não restringe nem condiciona os direitos de nossos aposentados. Um acordo que protege o investimento em obras públicas, que é um dos pilares da recuperação económica e da criação de emprego”.
O ministro da Economia, Martín Guzmán, acrescentou que não haverá “reforma trabalhista” ou “privatização de empresas públicas”.
“Negociamos de forma soberana, por isso este acordo não nos impõe um deficit zero, nem nos obriga a uma reforma trabalhista. Não impacta os serviços públicos, não relega nossos gastos sociais e respeita nossos planos de investimento em ciência e tecnologia”, afirma o decálogo do FMI assinado pelo governo argentino.
O trecho onde se evidencia a primeira bola fora do governo é este: “a dívida foi assumida de forma irresponsável pelo governo Macri, e nós, como fizemos em outras ocasiões ao longo da história, assumimos esse problema e vamos resolvê-lo. Concordar significa poder aceder a novos financiamentos para continuar a crescer, e que esta recuperação chegue a cada casa e a cada família”.
O diálogo do governo argentino com o FMI foi o estopim de inúmeras lutas, mesmo dentro da coligação do governo, a Frente de Todos. Segundo a imprensa, a vice-presidente Cristina Kirchner, lidera o sector mais relutante em aceitar qualquer condição do Fundo que implique um reajuste. “O presidente prometeu enviar o acordo com o FMI ao Congresso. Eu gostaria que, no passado, tal dívida tivesse passado por este Congresso, para cuidar de nossa democracia. Talvez tenha sido covardia não terem enviado o projecto para cá”, disse o deputado Máximo Kirchner, filho de Cristina e do também ex-presidente Néstor Kirchner.
Após o pacto de um novo programa com o FMI, o acordo deve ser ratificado pelo Congresso, onde a vitória da oposição nas eleições legislativas de 14 de Novembro passado deixou o governo sem o controle que tinha no Senado – apesar de manter a maioria de apenas dois votos na Câmara dos Deputados.
Há quase um ano, a directora gerente do FMI, Krystalina Georgieva, disse que era “um momento muito importante” para a Argentina implementar políticas para uma reestruturação bem-sucedida de sua dívida, enquanto o Papa Francisco alertava que “soluções insensíveis podem prejudicar as sociedades”.
Aparecendo inesperadamente na conferência do Vaticano, na Pontifícia Academia de Ciências Sociais, na qual participaram o economista americano Joseph Stliglitz, o ministro argentino da Economia Martín Guzmán e a chefe do FMI, o Papa pediu “novas formas de solidariedade” para ajudar os países endividados, ressaltando que “não estamos condenados à desigualdade universal”.
Francisco acrescentou que a política de endividamento de um país “pode se tornar um factor que prejudica o tecido social”. Hoje, os analistas se perguntam qual foi a influência do papa argentino no acordo que finalmente foi assinado com o FMI.
Stiglitz, mentor de Guzmán, disse então que a actual crise da dívida argentina deu ao mundo a oportunidade de “demonstrar que existe uma abordagem alternativa àquela que falhou repetidamente no passado” e pediu a promoção de “uma estrutura que talvez agrade a noções de racionalidade económica e ao nosso senso de solidariedade social, uma humanidade comum, que neste momento da história parece tão sob ataque”.
O sector da Frente de Todos que responde ao presidente Alberto Fernández apresenta o acordo como uma conquista e comemora porque “não inclui políticas de ajuste”, como disse o ministro da Economia. Esta afirmação se choca com a realidade quando, paralelamente, se prevê aumentos nas tarifas dos serviços públicos, uma nova desvalorização significativa do peso argentino e um aumento das taxas de juros bancárias, medidas que afectarão significativamente a população. Qual é a verdade?
Por enquanto, há quem não esteja muito feliz dentro da coalizão governante. Alicia Castro, ex-embaixadora no Reino Unido e na Venezuela, alertou que “só quem é muito fantasioso pode pensar que, depois disso, o presidente será reeleito. Vivemos isso como uma derrota, com muita preocupação”.
Alicia lamentou profundamente o fato de o governo não ter escolhido a postura de dar o exemplo ao prestar contas ao FMI perante o Tribunal Internacional de Justiça, que foi a oportunidade de dizer “basta”, para obter melhores condições na negociação.
“Com o acordo, o povo argentino está sendo obrigado a pagar por uma farsa”, disse Castro, que qualificou de “antiética” a atitude de “dizer que não haverá reajuste, que o gasto zero será a partir de 2025”, porque “eles estão se alegrando pelo fato de que isso acontecerá durante a gestão de outro governo”, acrescentou a ex-dirigente sindical.
A origem
Por que a dívida se originou e o que foi feito com ela? Todos sabem que a Argentina é um país rico em recursos de todos os tipos, que conta com uma mão-de-obra numerosa e qualificada, com alto nível de educação e formação, que pode ser melhor capacitada.
“A dívida externa do governo anterior foi gerada quando se decidiu contrair dívida em moeda estrangeira para cobrir o deficit fiscal de 2015, que era em moeda nacional e era de aproximadamente 4,5% do PIB, cerca de 216 biliões de pesos argentinos. E levaram dólares por isso”, explica o economista Horacio Rovelli.
Deve-se acrescentar, também que o pagamento aos fundos abutres chefiados por Paul Singer, no valor de 9,3 bilhões de dólares, mais os deficits fiscais durante o governo de Macri, causados pela inépcia macrista, que reduziu os impostos sobre a soja e derivados, eliminou todos os outros direitos de exportação, implementou um plano para reduzir o imposto de renda – gerando ainda mais deficit fiscal – e tentando cobrir tudo isso colocando títulos do governo em moeda estrangeira, alguns com vencimento em 100 anos.
Os dólares chegaram, mas como o governo teve que arcar com as despesas internas em pesos (aposentadorias e pensões, contratos, salários das Forças Armadas e de Segurança, salários do restante dos funcionários públicos, transferências, licitações de obras, etc), deixou a administração desses dólares ao Banco Central argentino, que também vendeu essas moedas ao câmbio oficial para pessoas físicas, principalmente as grandes empresas, com base na reforma financeira de 1977.
E como o governo neoliberal estava levantando o valor máximo que poderia ser comprado e até eliminou esse limite em Setembro de 2016, permitiu que 100 empresas comprassem 24,8 bilhões de dólares nos quatro anos de gestão macrista. O outro problema é que essas 100 empresas não pagaram imposto de renda sobre o valor que compraram.
Nenhuma das 100 empresas conseguiu pagar metade dos impostos sobre os dólares que compraram, o que representa crime de sonegação de impostos e fuga de capitais, no caso de empresas em geral, além de lavagem de dinheiro no caso dos bancos que venderam esses dólares do Banco Central e não tomaram as devidas precauções para registar a origem dos fundos – crime que foi claramente demonstrado, pois declararam lucros ou outros tipos de receitas relativas aos dólares.
Ao mesmo tempo, o governo de Alberto Fernández, que priorizou a negociação da dívida externa em detrimento da dinamização da economia, da produção e do trabalho nacionais, conseguiu um período de carência com os detentores privados de títulos da dívida até o segundo semestre de 2024. Mas claro, terá que pagar os juros.
Mas com relação à dívida com o FMI, que foi contraída sem prévia autorização do Congresso, não só foi validada desde o início do actual governo de Alberto Fernández, como também foram pagas as duas primeiras parcelas de capital que, somadas aos juros, significou desembolsos de 6,3 bilhões de dólares nos dois primeiros anos de gestão.
Na sexta-feira (28/1), foram pagos juros de cerca de 731 milhões de dólares, graças a um acordo que deve ser endossado pelo Congresso Nacional.
“O gasto público da administração nacional é de 22,1% do PIB, um dos mais baixos dos últimos 75 anos, e se pretende levá-lo para 18,7%, o que é claramente impossível”, disse o economista Horacio Rovelli.
“Então, o FMI vai exigir que os recursos naturais sejam vendidos a um preço vil. Eles vêm pelo subsolo argentino e pelo que o país cultiva, para comprá-lo a preço de leilão. Para isso, vão usar os dólares que saíram do país durante a fuga de capital promovida pelo governo macrista, aqueles que o Banco Central vendeu nos últimos dois anos da gestão anterior”, acrescentou.
Empréstimo a Macri não serviu ao país, diz FMI
O FMI admitiu que o empréstimo Macri não conseguiu restaurar a confiança do mercado ou reduzir os desequilíbrios fiscais. “A estratégia e as condições do programa não foram sólidas o suficiente para corrigir os problemas estruturais da Argentina, como finanças públicas frágeis, dolarização, inflação alta, políticas monetárias fracas, sector financeiro limitado e base exportadora reduzida”, afirma o relatório de avaliação do programa.
O crédito de 57 bilhões de dólares que o FMI concedeu ao governo argentino em 2018 – dos quais 44 bilhões foram desembolsados – não cumpriu seus principais objectivos. “A estratégia e as condições do programa não foram fortes o suficiente para corrigir os problemas estruturais da Argentina, como finanças públicas frágeis, dolarização, inflação alta, políticas monetárias fracas, sector financeiro limitado e base exportadora reduzida”, destaca o relatório.
A então directora-gerente do FMI, Christine Lagarde, deu os parabéns às autoridades argentinas por terem alcançado o acordo e enfatizou a necessidade de acelerar a redução do deficit do país. “O plano económico do governo gira em torno de um reequilíbrio da posição fiscal. Apoiamos plenamente essa prioridade e saudamos a intenção das autoridades de acelerar o ritmo de redução do deficit do governo federal, restabelecendo o saldo primário até 2020”, disse ela.
Da mesma forma, Lagarde acrescentou que o FMI apoia “esforços redobrados” para reduzir a inflação que “devora as bases da prosperidade económica da Argentina e atinge directamente os segmentos mais vulneráveis da sociedade”.
Hoje, o FMI também atribui parte da responsabilidade a Macri, pela ausência de medidas sobre operações de dívida e controles sobre a movimentação de capitais foram prejudiciais. O FMI também critica a existência de problemas de comunicação e excesso de optimismo nas expectativas económicas, incluindo a inflação – o macrismo previa um aumento de preços de 15% para 2018, mas naquele ano a inflação foi de 47,6%, a maior dos últimos 27 anos.
A organização admite que o crédito não conseguiu a redução progressiva das tensões na balança de pagamentos da Argentina, nem a protecção dos sectores mais vulneráveis da população. A crise económica argentina, que começou em 2018 e se agravou nos dois anos que se seguiram, atingiu de forma particularmente dura aqueles com menos recursos. Entre 2018 e o final de 2020, a pobreza cresceu de 32% para 42% da população.
Se o acordo com o FMI for aprovado pelo Congresso, com a desculpa de que “não há mais nada a fazer”, haverá uma enorme frustração, pelas expectativas sinceras e a enorme esperança original geradas no povo pelo actual governo.
O “entendimento sobre políticas prioritárias” para um acordo com o FMI conseguiu evitar o incumprimento até 2024, mas não reduziu as sobretaxas ou a tutela permanente e omnipresente dos funcionários do FMI. “Conseguimos um calote diferido e não uma solução para o endividamento (…) Há uma transferência monumental de soberania e metas extremamente precisas para a situação imediata 2021-2024”, disse Claudio Lozano, director do Banco Nación.
Este governo, em sua plataforma eleitoral de 2019, prometeu combater prioritariamente “a crescente pobreza, a destruição e precariedade do mercado de trabalho, a queda acentuada do poder de compra dos salários num contexto de inflação acelerada, o regime tarifário que desconfigura a economia, as políticas de ajuste impostas ao Estado e o endividamento externo que condiciona as acções de uma futura administração governamental”.
Esse compromisso foi apenas uma propaganda eleitoral, sem levar em consideração a real dimensão do desafio por trás do endividamento brutal deixado pelo governo anterior? Por mais de dois anos, se defendeu a incrivelmente inocente tese de que o FMI “não é o mesmo”, para justificar as negociações confidenciais, ao mesmo tempo em que lavou sua clara responsabilidade na crise? Por que outras vozes e propostas sérias, que não eram apenas slogans ou expressões de desejo, não foram consultadas e ouvidas?
A sociedade argentina deve enfrentar activamente a realidade, contra os enganos e a desmoralização, para defender suas condições de vida e seu futuro. Pode e deve fazê-lo.
Jorge Marchini é professor de Economia da Universidade de Buenos Aires, coordenador para a América Latina do Observatório Internacional da Dívida e investigador do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). Aram Aharonian é jornalista e comunicólogo uruguaio, criador e fundador do canal TeleSur. Ambos são analistas do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)
*Publicado originalmente em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli
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