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E agora, Rússia?...

17-06-2022 - Cândido Ferreira

- Nunca discorro sobre assuntos que não domino. Muito cedo conheci a Rússia, quase todas as “Rússias”, desde as repúblicas do Pacto de Varsóvia às dos Balcãs, do Cáucaso ao Mar Negro e desde São Petersburgo às “Sibérias”, que também são muitas e variadas, algumas a puxar para bikinis e outras para véus ortodoxos ou islâmicos.

Em 1989, foi sem surpresa que assisti ao desabar do Muro de Berlim, para, nos anos seguintes, depositar fortes esperanças na abertura de um regime autocrático que, com um século de atraso, indiciava um difícil ritual de aproximação ao Ocidente.

Engano redondo porque, passada a confusão libertária, depressa ouvi os guias turísticos a debitarem novas cassetes em que se afirmavam “euroasiáticos” e, alguns, até antieuropeístas. Um retorno ao isolamento do passado, assente em propaganda que teve efeitos em populações que me brindavam com refeições servidas sem cortesia e em que, à saída, até recontavam os talheres. Bem conhecido, também em Portugal os operadores turísticos conhecem bem este sentimento de enorme desconfiança, que hoje marca muitos dos turistas russos.

Por elucidativa, recordo a minha chegada ao Hotel Pribaltika, em São Petersburgo, em 2006, quando o meu condutor contornou sem problemas um aparatoso dispositivo de segurança, montado nas imediações. Espantado com tão estranha atuação, fui serenamente informado de que aguardavam o Presidente.

- Mas como é que o Putin soube? – Gracejei para minha mulher porque, recolhidos no aeroporto por um tipo que parecia mandar nos outros, deu para perceber que, desde esse instante, estávamos sob a alçada das “secretas”.

Acolhidos como VIPS na Receção, de imediato as nossas malas ascenderam ao quarto. E só tardava uma pequena formalidade, que era a devolução dos passaportes. Havia que ter paciência, porque a fotocopiadora enguiçara…

A necessitarmos de cuidados de higiene, e já em atraso para uma visita turística, foi-nos sugerido que subíssemos porque, na volta, nos devolveriam a documentação. E os agentes, ao redor, até abriram alas…

Avisados da chegada da guia local, pouco depois já descíamos para, à saída do elevador, sermos travados por um matulão que, pertencente à guarda de Putin, nos solicitou os passaportes.

- Estão na Receção. – Expliquei, apontando o balcão ao lado.

Desta vez, porém, já vestindo “trajes soviéticos”, o rececionista ergueu o queixo e comunicou que teria de desembolsar vinte dólares se quisesse reaver os passaportes.

- Mas, porquê? Isso é ilegal! – Protestei, exigindo aquilo que era meu, mesmo nas barbas do agente da autoridade, encostado a mim.

Esbarrei, no entanto, com uma troca de olhares cúmplices e um cruzar de braços, que não me deixaram dúvidas sobre a “excursão” que nos estaria destinada a seguir, caso não alinhasse naquele “negócio”. Muito mais “azar” teve um turista chinês horas depois, linchado no Kremlin, na “desforra” dos apoiantes da seleção russa de futebol após a derrota em futebol, frente ao Japão, no campeonato do mundo.

Meses depois, o mundo inteiro assistiria, atónito, a uma “operação de charme” que prova bem a distorção dos valores humanos que já então crescia naquele país. Tudo aconteceu quando um comando checheno sequestrou quase mil cidadãos, num teatro e, na ausência de qualquer plano de emergência, as autoridades resolveram sufocar o incidente com um gás letal introduzido pelo ar condicionado. E assim caíram mais de duzentas vítimas da “nata moscovita”, sem que os hospitais tivessem, sequer, sido avisados e munidos dos antídotos necessários para qualquer salvamento.

Perante estas e outras cruas realidades, foi sem surpresa que assisti à afirmação de uma oligocracia corrupta e sanguinária que, em vez de estender pontes para o Ocidente, se acastelou numa fortaleza dourada, a coberto do maior arsenal atómico do mundo. Gente de uma brutalidade inimaginável, capaz de sacrificar milhares de soldados em teatros de guerra e de eliminar legiões de opositores, de jornalistas e até de muitos cidadãos inocentes… como eu “apanhados sem passaporte”.

E foi neste caldo de medo e de intolerância, e onde em cada posto de comando vigora a lei do mais forte, que a pilhagem da riqueza prosseguiu, alimentada pela troca dos recursos naturais. Até se chegar à guerra da Ucrânia, uma “operação” inimaginável e que dura há mais de cem dias, com o navio almirante russo no fundo do Mar Negro e o que resta do seu destroçado exército atascado entre ruínas. Enquanto isto, em desespero, os seus desastrados líderes ameaçam recorrer à “solução final”, ao caso um holocausto nuclear de que eles próprios têm consciência de que não sobreviverão.

Seja qual for o desfecho imediato da chacina que ainda prossegue, mais do que uma “humilhante derrota da Rússia”, que, insisto, previ ao quarto dia de invasão, o mundo atual assiste à implosão de um Império que, insensatamente, ousou pôr em causa a “ordem natural das coisas”. E depois deste clamoroso erro de avaliação, na iminência de uma crise interna que se prolongará por muitos anos e rodeada de vizinhos que não primam pela bondade, para onde caminha hoje a “Grande Rússia” com que Pedro, Catarina, Lenine e Putin sonharam no passado?

Convertido à tese de que, ao Ocidente, convém que a Rússia arda em lume brando, e assim se evitem humilhações que provoquem ainda maiores danos, tenho a certeza de que uma incorreta leitura da História e um atraso civilizacional incontornável, serão decisivos para o futuro próximo do que resta daquele Império.

Reduzida a pouco mais que um BRIC, e por mais armas atómicas que possa ainda reter, nunca a acossada oligarquia dominante poderá firmar a potência respeitada que o mundo antes reconhecia.

Cândido Ferreira – Cidadão europeu e escritor

 

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