16-04-2021
Há uma piada antiga sobre contrapartidas complicadas que nos pede para imaginarmos o nosso pior inimigo a cair num precipício ao volante do nosso carro novinho em folha. Ficaríamos felizes com a morte do nosso inimigo ou tristes com a destruição do nosso carro?
Para muitos, a forma da tão esperada e necessária recuperação económica global deste ano apresenta um dilema semelhante. Na ausência de uma reformulação das políticas nacionais e da coordenação internacional, a significativa aceleração do crescimento esperada em 2021 será muito desigual, tanto entre os países como dentro dos países. Com isso, vem uma série de riscos que pode tornar o crescimento nos anos subsequentes menos robusto daquilo que poderia e deveria ser.
Com base nas informações actuais, espero que o rápido crescimento na China e nos Estados Unidos conduza a uma expansão global de 6%, ou mais, este ano, em comparação com uma contracção de 3,5% em 2020. Mas, embora a Europa deva sair da dupla recessão, a recuperação provavelmente será mais moderada. Há zonas do mundo emergente que estão numa posição ainda mais difícil.
Grande parte desta divergência, real e prevista, decorre de variações num ou em mais de cinco factores. O controlo de infecções por COVID-19, incluindo a disseminação de novas variantes do novo coronavírus, é claramente crucial. O mesmo ocorre com a distribuição e administração de vacinas (o que inclui garantir o abastecimento, superar obstáculos institucionais e garantir a aceitação pública). Um terceiro factor é a resiliência financeira, que em alguns países em desenvolvimento envolve a gestão preventiva das dificuldades provenientes da recente onda de dívidas. Em seguida, surge a qualidade e a flexibilidade da formulação de políticas e, finalmente, tudo o que resta nas reservas de capital social e resiliência humana.
Quanto maiores forem as diferenças entre e dentro dos países, maiores serão os desafios para a sustentabilidade da recuperação deste ano. Isto reflecte uma ampla gama de factores de saúde, económicos, financeiros e sociopolíticos.
Num recente comentário, expliquei o porquê de um progresso global mais uniforme na vacinação contra a COVID-19 ser importante, mesmo para os países cujos programas nacionais de imunização estejam na vanguarda do grupo. Sem um progresso universal, os principais vacinadores enfrentam uma escolha difícil entre arriscar a importação de novas variantes do exterior e administrar uma economia tipo fortaleza com governos, famílias e empresas a adoptarem uma mentalidade de abrigo subterrâneo.
As recuperações económicas desiguais impedem que os países individuais recebam os ventos a favor da expansão sincronizada, na qual o crescimento simultâneo da produção e do rendimento estimula um ciclo virtuoso de bem-estar económico generalizado. Também aumentam os riscos de proteccionismo comercial e de investimento, bem como interrupções nas cadeias de abastecimento.
Depois, há o ângulo financeiro. O crescimento em alta dos EUA, juntamente com as expectativas de inflação mais altas, elevou as taxas de juro do mercado, com repercussões para o resto do mundo. E ainda há mais por vir.
Os representantes do Banco Central Europeu já reclamaram sobre o “aperto indevido” das condições financeiras na zona euro. O aumento das taxas de juro também pode enfraquecer o paradigma dominante nos mercados financeiros – nomeadamente, a alta confiança dos investidores em injecções de liquidez amplas, previsíveis e eficazes por parte de bancos centrais sistemicamente importantes, o que tem incentivado muitos a aventurarem-se muito além do seu habitat natural, correndo riscos consideráveis, ou até mesmo excessivos e irresponsáveis. A curto prazo, a alta liquidez abriu caminho para o financiamento barato a muitos países e empresas. Mas reversões repentinas nos fluxos de fundos, bem como o risco crescente de acidentes de mercado e erros de política cumulativos, podem causar graves interrupções.
Por fim, a recuperação económica desigual corre o risco de agravar os fossos que existem no rendimento, na riqueza e nas oportunidades que a crise da COVID-19 já aumentaram de forma gigantesca. Quanto maior é a desigualdade, particularmente no que diz respeito às oportunidades, mais nítido é o sentimento de alienação e marginalização, e mais provavelmente a polarização política impedirá a formulação de políticas adequadas e oportunas.
Mas, enquanto a velha piada gira em torno da inevitabilidade de difíceis contrapartidas, há um meio-termo para a economia global em 2021 e além – um que mantém uma recuperação robusta e, simultaneamente, melhora os países, grupos e regiões desfavorecidos. Isto requer adaptações na política nacional e internacional.
As políticas nacionais precisam de acelerar as reformas que combinam alívio económico com medidas para promover um crescimento muito mais inclusivo. Não se trata apenas de melhorar a produtividade humana (através da requalificação de mão de obra, reformas educacionais e melhor apoio social à criança) e da produtividade do capital e da tecnologia (através de grandes actualizações na infra-estrutura e cobertura). Para reconstruir melhor e de forma mais justa, agora os governantes têm também de considerar a resiliência climática como um contributo decisivo para uma tomada de decisões mais abrangente.
O alinhamento da política global também é vital. O mundo tem a sorte de ter beneficiado inicialmente de políticas nacionais correlacionadas (em oposição a políticas coordenadas) em resposta à crise da COVID-19, com a grande maioria dos países a optar antecipadamente por uma abordagem abrangente e governamental como um todo, custe o que custar. Mas, sem coordenação, as posturas políticas irão divergir cada vez mais, à medida que as economias menos robustas forem enfrentando ventos contrários externos adicionais num momento de declínio dos fluxos de ajuda, alívio incompleto da dívida e investimento estrangeiro directo hesitante.
Com os EUA e a China a liderarem uma recuperação significativa no crescimento, a economia global tem a oportunidade de sair de um choque pandémico que prejudicou muitas pessoas e, em alguns casos, apagou uma década de progresso na redução da pobreza e outros objectivos socioeconómicos importantes. Mas, sem adaptações de políticas nacionais e internacionais, esta recuperação poderá ser tão desigual que esgotará prematuramente o período prolongado de crescimento mais rápido e muito mais inclusivo e sustentável do qual a economia global tanto necessita.
MOHAMED A. EL-ERIAN
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Mohamed A. El-Erian, presidente do Queens ’College, University of Cambridge, é ex-presidente do Conselho de Desenvolvimento Global do presidente dos EUA, Barack Obama. Ele foi nomeado um dos 100 maiores pensadores globais da política externa por quatro anos consecutivos. Ele é o autor de dois best-sellers do New York Times, incluindo, mais recentemente, The Only Game in Town: Central Banks, Instability, and Avoiding the Next Collapse. |