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Trump, o Dragão e o Minotauro
Autor: Yanis Varoufakis

09-12-2016

ATENAS – Se Donald Trump consegue compreender algo, é a importância da falência e da reciclagem financeira. Conhece bem o sucesso através de padrões estratégicos, seguido de remissões de dívidas maciças e da criação de activos a partir de passivos. Mas compreenderá ele e a profunda diferença que existe entre a dívida de um promotor e a dívida de uma grande economia? E será que tem a noção de que a bolha da dívida privada da China é um barril de pólvora sob a economia global? Muito depende do facto de ele compreender isto ou não.

Trump foi eleito numa onda de descontentamento face à colossal má gestão do establishmet no que se refere à expansão anterior a 2008 e à recessão pós-2008. A sua promessa de um estímulo interno e de políticas comerciais proteccionistas para restabelecer o empregos no sector industrial conduziram-no à Casa Branca. O cumprimento destas promessas dependerá da forma como compreende o papel que os EUA desempenhavam nos "bons velhos tempos", o papel que podem desempenhar actualmente e, fundamentalmente, a importância da China.

Antes de 1971, a hegemonia global dos EUA baseava-se no excedente da balança de transacções correntes dos EUA com o restante mundo capitalista, que os EUA ajudaram a estabilizar através da reciclagem de parte do seu excedente para a Europa e o Japão. Isto sustentou a estabilidade económica e um acentuado declínio da desigualdade em toda a parte. No entanto, quando os EUA entraram em situação de défice, esse sistema global deixou de funcionar, dando origem ao que designei como a fase do Minotauro Global.

Segundo o mito antigo, o Rei Minos de Creta devia a sua hegemonia ao Minotauro, um animal sinistro preso sob o palácio de Minos. A profunda solidão do Minotauro só era comparável ao medo que inspirava por todos os cantos, porque o seu apetite voraz apenas podia ser satisfeito (garantindo assim o reinado de Minos) por carne humana. Assim, um navio carregado com jovens navegava regularmente da distante Atenas para Creta para entregar o seu tributo humano à fera. O ritual macabro era essencial para preservar a Pax Cretana e a hegemonia do Rei.

Após 1971, a hegemonia norte-americana desenvolveu-se através de um processo análogo. O Minotauro era nada mais nada menos que o défice comercial dos EUA, que consumiu um volume crescente das exportações líquidas do mundo. O crescente défice dos EUA foi financiado por milhares de milhões de dólares de entradas líquidas diárias em Wall Street de proprietários estrangeiros (e muitas vezes norte-americanos) destas fábricas distantes — uma forma de tributo moderno ao Minotauro Global.

Quanto mais o défice crescia, maior era o seu apetite pelo capital da Europa e da Ásia. O que tornou o Minotauro verdadeiramente global foi a sua função: ajudou a reciclar o capital financeiro (lucros, poupança e fundos excedentes). Manteve ocupadas as brilhantes fábricas alemãs. Devorou toda a produção do Japão e, posteriormente, da China. Contudo, Wall Street aprendeu simultaneamente a sobrealimentar estas entradas de capital através de instrumentos financeiros exóticos. As comportas da financeirização rebentaram e o mundo foi inundado com dívida.

No Outono de 2008, o Minotauro foi mortalmente ferido na sequência do confronto com o muro da dívida privada que era um subproduto do seu apetite. Embora a Reserva Federal e o Tesouro tenham ressuscitado os mercados dos EUA (à custa dos norte-americanos mais fracos, deixados para trás desde a década de 1970), nada voltará a ser como dantes: a aptidão de Wall Street para continuar a "fechar" o círculo da reciclagem mundial desapareceu. O sector bancário dos EUA deixou de conseguir aproveitar os défices comerciais e orçamentais dos EUA com vista a financiar uma procura interna suficiente para sustentar as exportações líquidas do resto do mundo. A partir desse momento, a economia mundial passou a considerar que era impossível recuperar o seu equilíbrio.

Na sequência do ferimento mortal do Minotauro, os EUA podem agradecer não só à Reserva Federal e ao Tesouro por ajudarem a evitar uma nova Grande Depressão. Os EUA também foram salvos pelo Dragão: o governo chinês aumentou o investimento nacional para níveis sem precedentes para compensar a diminuição criada pela contracção nas despesas nos EUA e na Europa. Durante muitos anos, a China permitiu que a criação de crédito pelos seus bancos formais e sombra funcionasse de forma descontrolada, permitindo-lhes mesmo beneficiar da largueza do dinheiro fácil da Reserva Federal através de empréstimos denominados em dólares. Em síntese, o Dragão entrou em cena para reequilibrar o Ocidente quando o Minotauro deixou de conseguir fazê-lo.

Os líderes chineses sabiam o que estavam a fazer. Estavam a criar uma bolha de investimento insustentável para dar à Europa e aos EUA a possibilidade de afinarem os seus violinos. Infelizmente, nenhum dos dois o conseguiu fazer: Os EUA devido ao impasse entre o Presidente Barack Obama e o Congresso controlado pelos republicanos, e a Europa por razões demasiado tristes para serem referidas. E quando a tempestade perfeita chegou em 2015, com as taxas de juro dos EUA a aumentar e os preços dos produtos de base a registarem uma queda, a China teve de impulsionar novamente a criação de crédito.

Actualmente, a expansão do crédito da China é apoiada por uma garantia quase tão má como aquela em que Bear Stearns, Lehman Brothers e os outros confiaram em 2007. Além disso, como o renminbi chinês está brutalmente sobrevalorizado, as empresas estão a contrair empréstimos em dólares para pagar antecipadamente a sua dívida denominada em dólares, exercendo uma pressão descendente sobre a taxa de câmbio.

O plano de Trump para ajudar aqueles que ficaram para trás na década de 1970, na medida do que é perceptível, parece girar em dois eixos: um estímulo interno e negociações bilaterais sob a ameaça de direitos aduaneiros e contingentes. No entanto, se Trump fizer um jogo duro com a China, levando os chineses a revalorizar o renminbi e utilizando a ameaça de imposição de direitos aduaneiros e afins, poderá muito bem acabar por picar a bolha da dívida privada da China - desencadeando uma enxurrada de consequências desagradáveis que iriam aniquilar qualquer estímulo interno introduzido por Trump.

Nesse caso, as despesas de Trump em infra-estruturas transformar-se-iam em mais bem-estar corporativo, implicando um efeito multiplicador insignificante. Esse facto, por sua vez, criaria o enquadramento para a austeridade futura, tendo em conta que o pânico sentido face a novos aumentos das taxas de juro dos EUA e a estouros no orçamento federal colocam os actuais compromissos governamentais não financiados sob pressão (como por exemplo a Segurança Social).

A estratégia económica a médio prazo de Trump só terá possibilidade de ser bem sucedida se ele compreender que não é a dívida pública dos EUA que deverá ser reestruturada, mas sim a dívida privada chinesa. Caso contrário, os rendimentos dos títulos do Tesouro dos EUA poderiam disparar, enfraquecendo gravemente a sustentabilidade da dívida dos EUA.

Da mesma forma, Trump deve perceber que não pode voltar a tornar grandes os EUA inspirando-se no estímulo não financiado de Ronald Reagan. Esse truque funcionou quando o Minotauro foi acorrentado e alimentado; não irá funcionar quando o Dragão esgotar o seu fogo. Em vez disso, se Trump pretende verdadeiramente reequilibrar a economia dos EUA para que o crescimento beneficie as pessoas abandonadas a quem ele prometeu tanto, deverá inspirar-se em Franklin D. Roosevelt e prosseguir uma reforma keynesiana de Bretton Woods.

YANIS VAROUFAKIS
Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, é professor de Economia na Universidade de Atenas.

 

 

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