04-03-2016
BERLIM – “A Europa será democratizada ou irá desintegrar-se!” Esta máxima é mais do que uma frase feita dita no manifesto do Movimento Democracia na Europa – DiEM25, o grupo que acabei de ajudar a lançar em Berlim. É um facto simples, talvez até sujeito a reconhecimento.
A actual desintegração da Europa é muito real. Há novas divisões a surgir em todos os lugares para onde se olha: ao longo das fronteiras, dentro das nossas sociedades e economias e na mente dos cidadãos europeus.
A perda da integridade da Europa tornou-se dolorosamente evidente no último episódio da crise de refugiados. Os líderes europeus solicitaram ao presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, que abrisse as fronteiras de seu país aos refugiados da cidade síria devastada pela guerra, Aleppo; ao mesmo tempo, castigaram com severidade a Grécia por deixarem os mesmos refugiados em território “europeu” e ainda ameaçaram erguer cercas na Grécia, ao longo das suas fronteiras com o resto da Europa.
Uma desintegração semelhante pode ser vista no campo das finanças. Se um cidadão americano ganhou um jackpot, ele não se importa se os dólares do seu prémio foram depositados num banco domiciliado em Nevada ou em Nova Iorque. Isto não é assim na zona euro. A mesma quantia em euros tem um valor “esperado” muito diferente numa conta bancária portuguesa, italiana, grega, holandesa ou alemã, porque os bancos nos Estados membros mais fracos são dependentes de resgates por parte dos governos com dificuldades fiscais. Isso é um sinal claro da desintegração da moeda única.
Enquanto isso, falhas políticas estão a dividir-se e a multiplicar-se no coração da União Europeia. O Reino Unido está dividido sobre a possibilidade de sair ou não - um reflexo da própria relutância crónica da sua estrutura política, tanto para defender a UE como para enfrentar o seu autoritarismo. O resultado é um eleitorado propenso a culpar a UE por tudo o que está errado, mas que não interessado em fazer campanha por mais democracia europeia ou em deixar o mercado único da UE.
Mais preocupante, o eixo franco-alemão que fortalece a integração europeia fracturou. Emmanuel Macron, o ministro da Economia de França, não poderia ter sido mais desanimador quando disse que os dois países estão a mover-se em direcção a uma versão moderna da Guerra dos Trinta Anos entre católicos e protestantes.
Enquanto isso, os países do sul definham num estado de recessão permanente pelo qual eles culpam o norte da Europa. E, como se isso não bastasse, outra linha ameaçadora de fracasso surgiu ao longo da antiga Cortina de Ferro, com os governos de países ex-comunistas a desafiarem abertamente o espírito de solidariedade que costumava caracterizar (pelo menos em teoria) o projecto europeu.
Por que razão a Europa está a desintegrar-se? O que poderá ser feito a esse respeito?
A resposta está na origem da UE. A UE surgiu como um cartel de indústrias pesadas determinado a manipular os preços e a redistribuir lucros do monopólio através de uma burocracia localizada em Bruxelas. Para fixar os preços entre as fronteiras europeias, houve uma necessidade de corrigir também as taxas de câmbio. Durante a era Bretton Woods, os Estados Unidos forneceram este “serviço”. Mas assim que os EUA se livraram do acordo de Bretton Woods, no verão de 1971, os administradores do cartel com sede em Bruxelas começaram a projetar um sistema de taxa de câmbio fixa europeia. Após uma série de fracassos (muitas vezes espectaculares), o euro nasceu para unir bem as taxas de câmbio.
Tal como acontece com todos os gestores de cartéis, os tecnocratas da UE trataram a verdadeira democracia pan-europeia como uma ameaça. Pacientemente, metodicamente, foi colocado em acção um processo de despolitização da tomada de decisões. Os políticos nacionais foram recompensados pela sua aquiescência, enquanto aqueles que se opuseram à abordagem tecnocrática do cartel foram rotulados de “antieuropeus” e tratados como intrusos.
Assim, embora os países europeus tenham permanecido democráticos, as instituições da UE, para onde a soberania sobre as decisões cruciais foi transferida, permaneceram sem democracia. Tal como Margaret Thatcher explicou durante a sua última aparição parlamentar como primeira-ministra britânica, quem controla o dinheiro e as taxas de juro, controla a política da Europa.
Entregar o dinheiro e a política da Europa à administração de um cartel não significou apenas o fim da democracia europeia; também alimentou um ciclo vicioso de autoritarismo e fracos resultados económicos. Quanto mais o sistema estabelecido na Europa sufoca a democracia, menos legítima a sua autoridade política se torna. Isso leva a que os líderes europeus dobrem a aposta no autoritarismo, a fim de manterem as suas políticas fracassadas quando as forças económicas recessivas fortalecerem. É por isso que a Europa é a única economia do mundo que não conseguiu recuperar, desde 2008.
É através deste ciclo vicioso que a crise da Europa está a tornar os seus povos absortos e a virá-los uns contra os outros, amplificando o jingoísmo e a xenofobia latentes. Na verdade, foi o que tornou a Europa incapaz de absorver choques externos - como o afluxo de refugiados no verão passado.
O que devemos fazer agora é o que os democratas deveriam ter feito em 1930 para evitar uma catástrofe que agora está a tornar-se mais uma vez imaginável. Devemos estabelecer uma coligação pan-europeia de democratas radicais, sociais, verdes e liberais para colocar o “demos” novamente na democracia, contrariando um sistema estabelecido na UE que vê o poder do povo como uma ameaça à sua autoridade. É sobre isto que o DiEM25 trata e é por isso que é necessário.
Será que somos utópicos? Talvez. Mas é mais realista do que a tentativa do sistema da UE em depender de uma união desintegrada e antidemocrática, semelhante à de um cartel. Se o nosso projecto é utópico, também é a única alternativa para uma distopia em evolução.
O verdadeiro perigo não é termos objectivos demasiados altos e não conseguirmos alcançá-los. O verdadeiro perigo real é que os europeus olhem demasiado para o abismo e acabem por cair nele.
Yanis Varoufakis
Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, é professor de Economia na Universidade de Atenas.