28-08-2015
O grande temor agora é de que um espirro da China provoque, como costumava acontecer com os Estados Unidos em outras épocas, uma gripe mundial.
O fantasma que ronda a espectacular queda da bolsa chinesa é o do crash de 1929 e o da mais recente crise financeira, em 2008, que foram os pontos de partida das duas maiores recessões mundiais dos últimos 100 anos.
O mercado bolsista chinês fechou em queda de 8,5% num dia tumultuado, que levou as autoridades do país a falar numa “segunda-feira negra”.
A queda se disseminou. Primeiro, pelas demais bolsas da Ásia. O preço do petróleo caiu ao seu nível mais baixo em seis anos e o valor médio das “commodities” sofreram sua maior diminuição neste século.
O efeito dominó alcançou as bolsas europeias, que registaram queda entre 5 e 6%, para logo se estender aos Estados Unidos e à América Latina.
O comportamento em manada dos mercados financeiros é a norma em momentos de crise: na imensa maioria dos casos, se trata de problemas passageiros, ajustes devido aos anteriores excessos cometidos pela especulação.
O impacto sobre a economia real depende das vias de transmissão de uma crise. No caso da bolsa chinesa, sua conexão com o resto do mundo, ou com o conjunto da sociedade chinesa, não é grande: as acções em mãos estrangeiras são mínimas e somente 6% da população tem participação no mercado.
O grande temor agora é sobre a hipótese de que um espirro da China provoque, como costumava acontecer com os Estados Unidos em outras épocas, uma gripe mundial.
Os sintomas
Os mercados globais perderam cerca de 5 triliões de dólares (quase um terço do PIB norte-americano) desde que o Banco Popular da China anunciou a desvalorização do Renminbi (a moeda chinesa, no dia 11 de Agosto.
Essa perda reflecte um temor a respeito da economia chinesa, que não é novo, mas que se disparou com as notícias dos últimos dois meses.
Em Julho, o governo chinês realizou uma drástica intervenção na bolsa de valores, depois que mais da metade das companhias ameaçaram suspender suas operações no mercado bolsistas.
Numa reacção interpretada por alguns como draconiana, o governo baixou as taxas de juros, flexibilizou as regras para que os fundos de pensão e segurança social pudessem investir mais, e facilitou os empréstimos por mais de 40 triliões de dólares, para que os corretores da bolsa pudessem sustentar o preço das acções com maior demanda.
As medidas acalmaram as águas, mas as três desvalorizações de Agosto, equivalentes a uma queda de 3% no valor do Renminbi, voltaram a gerar incertezas.
O tiro de misericórdia veio na sexta-feira passada, quando se conheceu um índice industrial que pelo sexto mês consecutivo, estava por baixo dos 50 pontos, percentagem equivalente a uma contracção industrial.
Segundo o que indicou à Carta Maior o analista Kamel Mellahi, especialista em mercados emergentes da Warwick Business School do Reino Unido, a actual tormenta reflecte esses dados.
“A expectativa generalizada era que a economia chinesa ia ter uma primeira metade de ano difícil, e que melhoraria na segunda metade. Os dados não reflectiram esta premissa. Muito pelo contrário. O pulso económico da actividade fabril está baixando muito mais rápido do que o esperado”, comentou Mellahi.
Uma vez contextualizados, esses casos não são tão impactantes. Segundo o professor John Ross, do Instituto de Estudos Financeiros Chongyang, da Universidade Renmin, de Pequim, em entrevista para a Carta Maior, o desempenho da economia chinesa continua sendo excelente.
“A China está crescendo a 6,5 ou 7%, três vezes mais que os Estados Unidos e quatro vezes ou mais em comparação com a Europa. É uma economia que passou de um ritmo de crescimento `super sensacional de 10% ou mais para um somente `sensacional como o actual”, explica Ross.
Finanças e economia real
É preciso sempre tomar com calma essas “segundas negras” das manchetes financeiras.
Na imensa maioria dos casos, a catástrofe é substituída, semanas depois, por títulos ribombantes sobre grandes recuperações, com fabulosos lucros.
Essa volatilidade é alimentada pelo forte elemento especulativo presente nos mercados que operam na velocidade da internet, e do comportamento “manada” durante as crises – quando os investidores tentam fugir pela porta saída e encontram um monte de gente correndo para qualquer lado.
Mas as bolsas também podem ter um impacto na economia real.
O valor da bolsa chinesa é um terço do PIB do país, enquanto a maioria das economias desenvolvidas está a mais de 100%.
Nos outros países, uma queda sustentada do valor bolsista pode impactar o crescimento económico e o consumo.
“O problema é que os mercados bolsistas dos países ocidentais estão seriamente super estimadas. Se a taxa de juros está tão perto de 0% por tanto tempo, o que sucede é que os activos financeiros terminam necessariamente super estimados”, indicou Ross à imprensa.
Se essa queda dos mercados se prolongar, o impacto seria inevitavelmente reflectido na debilitada economia global, que necessita mais demanda e mais consumo para revitalizar a produção e o comércio global.
América Latina
No caso da América Latina, o impacto da desaceleração chinesa já vem sendo sentido há dois anos.
Em seu último informe, a CEPAL apontou que a região só cresceria 0,5% este ano, e citou a queda dos preços das commodities, provocada por essa desaceleração, como uma das principais causas.
A Venezuela (pelo petróleo) e o Chile (pelo cobre) estão entre os mais prejudicados, mas não são os únicos.
Os problemas chineses contagiaram a região, e não somente no que diz respeito aos preços das commodities.
A desvalorização do Renminbi produziu uma queda de 1% do real brasileiro, enquanto o peso chileno também sofreu o impacto das notícias chinesas, com uma queda ao seu nível mais baixo nos últimos 12 anos.
“Será fundamental ver a capacidade de reacção de cada economia e como substituem a queda nas matérias-primas. Países como o México podem substituir o mercado chinês pelo norte-americano, e têm portanto maior capacidade de reacção. Esses países podem se beneficiar, porque a desvalorização de suas moedas os fará mais competitivos”, indicou Kamel Mellahi à BBC Mundo.
O que o governo chinês pode fazer?
O governo chinês não tem o prejuízo “laissez faire” dos países desenvolvidos: sempre que tem que intervir, o faz sem vacilar.
O fez durante a recessão económica mundial, com um massivo programa de investimentos estatais que permitiu ao país ser o primeiro a sair da contracção global, e arrastar boa parte do mundo, em especial os países em desenvolvimento.
Desde 2010, a China embarcou numa profunda mudança de modelo económico, de um baseado em investimentos e exportação a outro mais dependente do consumo.
Assim, a China deixou claro que essa mudança diminuiria as taxas de crescimento que, nas três décadas prévias, haviam sido de dois dígitos, e que passariam a ficar por volta dos 7%.
Entre a vontade intervencionista e as exigências que colocam essa mudança de modelo há fortes contradições.
“A China tem uma linha vermelha: o emprego. Isso é o que diz oficialmente o governo, porque é essencial para a paz social. Se a situação piorar e afectar os níveis de desemprego, vai a ser inevitável a tentação de voltar a estimular a economia com um novo plano de investimento em infra-estrutura”, contou Mellahi à BBC Mundo.
A taxa de desemprego chinesa tem variado pouco nos últimos cinco anos. Em 2014, ela foi de 4,09%, marginalmente mais alta que os 4,05% de 2013.
Mas o Boletim do Trabalho da China, editado em Hong Kong e especializado em temas trabalhistas, mostra que esse índice subestima o número real de desempregados.
“O índice oficial só regista o número de gente que busca empregos nas relações com o total de empregados urbanos, ignorando os trabalhadores rurais, os imigrantes e os que tem trabalho part-time ou temporário”.
Os perigos ocultos (subprime chinês)
Um grande enigma na crise bolsista chinesa é sobre se as acções se usaram como colaterais (garantias) de seus empréstimos bancários e hipotecários.
Se a soma é muito grande, temos uma pequena bomba de tempo, que poderia explodir com bancarrotas e um vermelho nas contas financeiras dos bancos.
Bastam dois dados para ver a dimensão desse possível buraco.
O plano de estímulo chinês de 2008-2098 quadruplicou o nível de dívida, até chegar a 28 triliões, cerca de 282 % do PIB.
Segundo a consultora McKinsey, quase metade dessa dívida está vinculada ao sector imobiliário.
A dívida não se limita aos bancos chineses, o que afecta as entidades norte-americanas.
Por agora, a crise parece uma das flutuações compensação e liquidação, tão frequentes no mercado financeiro, mas se essa bomba de tempo efectivamente existe, e o impacto sobre a economia chinesa e a mundial será muito mais forte.
Tradução: Victor Farinelli