12-09-2014
A gente não está associando o nosso mal estar, insatisfações e indignações ao domínio que o capital financeiro exerce diariamente nem nossas vidas.
Estamos vivendo um momento cheio de incertezas, mal-estar, insatisfações generalizadas. As contradições são mais sentidas no quotidiano do que entendidas. Algo invisível parece regular nosso destino e não as instituições democráticas que temos. É uma conjuntura de ventos que sopram para cá e para lá, criando ainda mais confusão. Como olhar o que está por trás de tudo isto?
Meu ponto de vista – como todos, aliás, tenho o meu, mas nem todos o põem às claras – é de um filósofo e sociólogo político. Como dirigente de organização de cidadania activa, o IBASE, assume publicamente meu activismo cidadão de modo radical, não partidário, mas parte da esquerda democrática existente no mundo.
Por isto mesmo, participei activa e organicamente do processo Fórum Social Mundial na primeira década do século XXI, uma verdadeira “fábrica de ideias” para pensar e criar movimentos de cidadania planetária contestatários da globalização neoliberal, imaginando e se engajando por “outros mundos possíveis”. O Fórum Social Mundial surgiu num momento como este, de grande mal-estar e frustrações.
Tenho certeza que o melhor do FSM foi criar esperança e, de facto, abrir espaço para alternativas num mundo dominado pelas corporações económicas e financeiras e do ideário neoliberal, visível no Fórum Económico Mundial, de Davos.
O facto é que, através do FSM, conseguimos denunciar as mazelas da globalização neoliberal, mas não foi suficiente para criar algo como uma onda irresistível de mudanças. A grande crise de 2008 foi criada pelas contradições do próprio sistema capitalista financeiro dominante. Seu desdobramento, porém, não mudou os fundamentos intrínsecos do domínio financeiro neoliberal. Continuamos sob os tentáculos invisíveis do capital financeiro global, longe do controle político. Aliás, até pelo contrário, estamos sob governos que atendem os ditames do capital financeiro e até o socorrem. Quantos milhares de milhões foram gastos, não para salvar gente da crise, mas para salvar um sistema financeiro corroído pelo cancro de sua própria ganância de extrair e acumular mais e mais valor, como o socorro nos EUA, após a falência do Lemon Brothers.
Bem, num mundo desestabilizado pela grande crise de 2008, continuamos sendo controlados pelos tentáculos invisíveis do capital financeiro global. Hoje, governos eleitos democraticamente dependem mais da nota de agências avaliadoras de risco para o capital especulativo – que ninguém elegeu e nem sabe direito quem definiu os critérios – do que do desejo de cidadãos. O caso da Grécia, Portugal, Irlanda e até Itália e França é exemplar. Só a pequena Islândia disse não e criou um outro governo, mas ela é apenas uma migalha na ponta do polvo financeiro que nos domina.
Como avaliar este quadro de um ponto de vista democrático? Tenho uma grande certeza: não pode ser no modo de Angela Merkel, a Chanceler Alemã. Ela afirma que a Alemanha se sai bem pois tem uma democracia adequada ao mercado. Mas, não seria o mercado que deveria se adequar à democracia? Quem é este invisível mercado que domina até a democracia? Bem, aqui estamos diante do que propunham e fizeram estadistas de porte Reagan e Tatcher, os grandes e truculentos construtores da globalização neoliberal, com radical concentração de recursos nas mãos dos proprietários de capital. O filósofo e sociólogo Habermas disse que Merkel era uma mistura suave dos dois..., praticante de um neoliberalismo chamado de democracia adequada aos ditames do mercado. Tal pensamento alimenta o ressurgimento de movimentos políticos nacionalistas, fascistas e xenofóbicos, que põem em risco a própria construção de um Europa solidária entre os povos que a compõem.
Surgiram, sim, movimentos importantes contestando isto tudo. Lembro aqui o dos “occupy” e o dos “indignados”. Eles adoptaram como mote contestar o “1%” que nos domina. São movimentos simbólicos, mas que fazem pensar. O economista francês Piketty, com seu livro sobre a riqueza, acaba de criar argumentos fortes ao mostrar que a riqueza dos “1%” cresce a uma taxa bem maior do que o PIB dos países. E ele concluiu isto estudando uns 30 países durante um século. Ou seja, vivemos e trabalhamos para satisfazer as ganâncias dos detentores de capital. A tese de Piketty desmonta, de maneira fundamentada, uma das tais verdades verdadeiras da própria ciência económica ao serviço do neoliberalismo.
Mas, por que nada muda? Numa resposta curta e simples, diria que o mundo não muda porque a cidadania activa, lá onde vivemos, num Planeta diverso ecológica e humanamente, não conseguiu criar pensamentos alternativos suficientemente convincentes e fortes que colem na vida das pessoas, no senso comum, com poder mobilizador irresistível e poder político suficiente para tudo mudar. O inimigo financeiro é grande, poderoso e invisível. Nossos Estados, nossos Parlamentos e o meio intelectual e político das ideias e projetos são dominados pelo capital financeiro.
Como parte de um colectivo planetário embrionário, verdadeiro exército de Brancaleone, tenho pregado por onde ando que precisamos libertar nossas próprias mentes do domínio neoliberal. Sim, não tenho dúvidas, o senso comum e até nossas cabeças pensantes são colonizadas pelo ideário que emana do livre mercado, pelo seu pensamento económico que diz não existirem alternativas a ele. A economia se mercantilizou radicalmente, as sociedades e a política se mercantilizaram e se financeirizaram. Este é o segredo do domínio do capital financeiro global, sem identidade, sem alma, sem nacionalismo, simplesmente global, presente em tudo, no colidiam, no trabalho, na TV, nos jornais, nas conversas no bar. Vamos ao supermercado e nem pesamos que o que compramos como utilidade é um valor sujeito a especulação. Usamos o cartão para pagar com normalidade, sem pensar que um percentual incluído no preço é a taxa do capital financeiro. Vivemos enclausurados pelo capital financeiro.
Desfazer isto não é fácil. Tenho certeza que se o mal-estar, insatisfações e incertezas presentes na nossa conjuntura fossem associadas ao capital financeiro global, presente em nosso quotidiano, abrir-se iam enormes possibilidades para a cidadania agir. Afinal, como gosto de lembrar, instituintes e constituintes, em última análise, somos nós, cidadãs e cidadãos. Mas para isto precisamos nos consciencializar, organizar e agir. O primeiro passo para isto precisa ser dado. Isto só acontece se desvendamos os tentáculos que dominam as estruturas de poder, até nossos sonhos e desejos.
Às vezes, me pergunto se falo de algo fora da realidade. Lembro aqui do processo do FSM que me levou a sentar numa mesa de debates, por duas vezes, com o mega especulador financeiro Soros. O primeiro encontro, entre uns 20 participantes convocados por Chirac, discutiu a posição francesa contra a intervenção americana no Iraque. A segunda, por ocasião do premio Nobel para Stiglitz, foi num debate da televisão sueca, entre Stigliz, Amartya Sen, Susan George, Soros e eu, algo meio surreal. Soros foi, para nós do Fórum, símbolo emblemático da globalização neoliberal. Ao mesmo tempo, sei que ele é um grande financiador da filantropia. Foi o maior apoio humanitário às vítimas do furacão Catarina, que destruiu parte de New Orleans. A última doação de que tenho notícias foi de 100 milhões de dólares para Human Watch. Mas financiou abertamente a oposição americana contra o bando de Busch. Homem afável e directo, ele não esconde que seu papel como financiador, era especular e ganhar dinheiro. Na sua visão, o que faltava era regulação do Estado e não mais mercado. Mas por que não põem toda sua especulativa fortuna a serviço da cidadania e da mudança?
Lembro estes factos para trazer aqui a resposta de todos a uma questão que fiz no debate em Estocolmo, talvez a única inteligente, sobre um dos fundamentos do pensamento económico neoliberal. Meio como contador de contas caseiras, perguntei como se pregava e se avaliava a saúde dos países pelo seu superávite nas exportações, se superávite de uns supunham deficits de outros. Ou seja, em termos globais, como os neoliberais pregam, para uns poucos ganharem muitos tem que perder. Todos concordaram na falsidade do argumento neoliberal, no seu poder em subjugar políticas de governos. Por que então seguimos aceitando tal fundamento como verdade?
Voltemos à nossa realidade quotidiana. A gente não está associando o nosso mal-estar, insatisfações e indignações ao domínio que o capital financeiro exerce em nossas vidas. Pior, não parece haver contestação de tal domínio à esquerda e muito menos à direita do nosso espectro político. Os tais “fundamentos económicos”, que incluem não controlar o poder decisório autoritário do Banco Central, são unanimidade. Quando entram no debate político é somente sobre o quanto de liberdade vai ser dado ao capital financeiro, em última análise. Será que a nossa grande questão, tipo de sociedade democrática, participativa e sustentável em termos sócio ambientais que queremos ser, depende do quanto fiéis seremos aos tentáculos invisíveis do capital financeiro que nos domina? Como esta questão não está nos debates políticos, concluo reconhecendo que não está perto uma mudança de fato em nossa política, com a cidadania impondo um movimento irresistível de buscar no aqui e agora a construção de caminhos de transformação, que nos libertem do domínio do capital financeiro sem rosto.
Cândido Grzybowski - Sociólogo, director do IBASE - Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Económicas