01-10-2021
Durante minha visita aos meus pais em Bogotá no mês passado, vi pessoas da vizinhança pedindo ajuda na rua para sobreviver. Desde o final de Abril, a Colômbia experimentou uma das maiores ondas de agitação social dos últimos tempos, e a fome está no centro dos protestos. A África do Sul passou por uma reviravolta semelhante em Julho.
O aumento da fome está criando volatilidade em muitos países, agravando o devastador impacto social e económico da pandemia COVID-19 e da crise climática. De acordo com dados recentes das Nações Unidas, 161 milhões de pessoas a mais passam fome hoje do que antes da pandemia, ou seja, um total de 811 milhões. Uma em cada três pessoas (quase 2,4 bilIões) não tem acesso a uma nutrição adequada.
Na ausência de avanços rumo ao objectivo de acabar com a fome e a desnutrição em todo o mundo até 2030, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, convocou uma cimeira sobre sistemas alimentares que acontecerá em 23 de Setembro em Nova York. Foi apresentado como uma oportunidade para discutir novas medidas utilizadas que vão transformar a forma como produzimos, consumimos e concebemos os alimentos.
Mas a cimeira foi contaminada por polémica desde o início, principalmente por causa da influência dos interesses corporativos na definição da agenda; na opinião dos críticos, há uma tentativa de privatizar o processo decisório. A ONU definiu a agenda preliminar em conjunto com o Fórum Económico Mundial, que colocou importantes atores corporativos em posições de liderança. Por exemplo, o trabalho da cúpula para acabar com a fome é liderado pela Global Alliance for Improved Nutrition (GAIN), uma fundação com sede na Suíça. GAIN recebe doações da fabricante de pesticidas BASF, que está tentando se apresentar como um "herói dos sistemas alimentares".
Especialistas em direitos humanos da ONU fizeram críticas devastadoras ao processo, que marginalizou o Comité de Segurança Alimentar Mundial (CFS), um fórum de discussão que reúne centenas de representantes de pequenos agricultores, pescadores, povos indígenas e organizações da sociedade civil. Michael Fakhri, Relator Especial da ONU sobre o direito à alimentação, acompanha reclamações de organizações agrícolas de base, das quais mais de 500 pediram um boicote à cúpula; Já foi dito que a influência excessiva das corporações na reunião é como "convidar a raposa para o galinheiro".
Pequenos agricultores, camponeses, pescadores, pastores e povos indígenas alimentam a maioria da população mundial, com pouco ou nenhum acesso às cadeias de abastecimento corporativas. Cerca de 80% das propriedades agrícolas mundiais têm menos de dois hectares e cobrem cerca de 12% da área agrícola mundial, enquanto os maiores 1% dos estabelecimentos de agro negócios controlam mais de 70% das terras usadas para a agricultura.
As corporações transnacionais têm um claro conflito de interesses quando se trata de prevenir o latifúndio, a desnutrição, a evasão fiscal e o uso abusivo de pesticidas. O mesmo em relação aos apelos para abandonar a agricultura intensiva e adoptar práticas agro ecológicas mais resilientes, sustentáveis e socialmente equitativas. Como essas empresas prestam contas a seus accionistas, os lucros são mais importantes para elas do que proteger o bem comum. Mas a comida é um bem comum e o acesso a ela é um direito humano fundamental. Esse deve ser o ponto de partida da discussão.
A crescente captura corporativa de alimentos deve ser motivo de preocupação universal. Se não estabelecermos limites, um futuro triste nos espera em que um punhado de grandes empresas controlará o que comemos e como é produzido. Um bom exemplo do perigo é o consumo crescente de produtos alimentícios ultra processados, um fator importante na pandemia de obesidade, diabetes tipo 2 e doenças relacionadas.
Essa captura corporativa é reflexo da crença de que os grandes agro negócios são essenciais para o fornecimento de alimentos; que tenham interesses alinhados aos das pessoas e estejam mais bem preparados do que governos e sociedade civil para definir as regras e políticas das quais nossos sistemas alimentares dependerão. Permite que as corporações aumentem seu controle sobre a terra, água e pesca, pratiquem um quase monopólio de sementes comerciais e façam uso intensivo de pesticidas e fertilizantes químicos sem levar em conta (muito menos resolver) os danos consequentes. Permitir que esse ponto de vista continue a dominar os principais fóruns internacionais, como a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU, enfraquecerá ainda mais a democracia e a autodeterminação.
Veja o caso dos pesticidas. Apesar dos danos que causam (que incluem o envenenamento de trabalhadores agrícolas e comunidades rurais, aumento da poluição e perda da biodiversidade do solo), seu uso cresceu enormemente nas últimas décadas. Os fabricantes realizam intensas campanhas de marketing, negam a extensão dos danos que causam e insistem que são seguros quando usados correctamente. Eles também garantem que são essenciais para atender às necessidades alimentares de uma população em crescimento, especialmente no contexto das mudanças climáticas.
Um bom exemplo é o Brasil. Entre Março de 2020 e Maio de 2021, o governo concedeu incentivos fiscais para pesticidas comerciais e aprovou 613 novos produtos (embora o país já estivesse na vanguarda mundial no uso de pesticidas). O presidente Jair Bolsonaro quer aumentar a produção industrial de bens agrícolas exportáveis, apesar das consequências letais que isso terá para os ecossistemas e a população do Brasil.
As empresas transnacionais também não salvarão os colombianos que protestam contra a fome e a desnutrição. O que essas pessoas precisam é de um governo capaz de arrecadar impostos de maneira adequada das grandes empresas, de gerar renda que sustente uma sólida rede de segurança social, e decidido a reverter a extrema desigualdade de acesso à terra, que atinge camponeses, afro descendentes e indígenas.
Em vez de esperar que as multinacionais resolvam a crescente crise de fome e desnutrição, a ONU e os governos nacionais devem encerrar a captura corporativa de alimentos e promover uma transição para a agro ecologia. E devem começar por garantir que essas empresas paguem seus impostos e sejam responsabilizadas pelas consequências de suas actividades sobre o meio ambiente e os direitos humanos.
Em 1948, a ONU declarou que a alimentação é um direito humano. Infelizmente, a cúpula da ONU será um ambiente mais propício para apoiar os lucros corporativos do que esperar para centenas de milhões de pessoas famintas.
SOFIA MONSALVE
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Sofia Monsalve, Secretária-Geral da FIAN International, é membro do Painel Internacional de Peritos em Sistemas Alimentares Sustentáveis. |