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O REGISTO DOCUMENTAL DO AQUECIMENTO GLOBAL
Autor: Benjamin Franta

21-09-2018

Num dia de 1961, um economista americano chamado Daniel Ellsberg tropeçou num papel com implicações apocalípticas. Ellsberg, conselheiro do governo dos EUA para os seus planos secretos relativos à guerra nuclear, descobrira um documento que continha uma estimativa oficial do número de mortes provocadas por um “primeiro ataque” preventivo à China e à União Soviética: aproximadamente 300 milhões nesses países, e o dobro desse valor no resto do mundo.

A existência de um tal plano perturbou Ellsberg; anos depois, tentou levar a público os detalhes do extermínio nuclear. Embora essa tentativa tenha falhado, Ellsberg ficaria mais tarde famoso por divulgar o que veio a ser conhecido como os Documentos do Pentágono – o relato secreto da intervenção militar do governo dos EUA no Vietname.

O planeamento militar amoral da América durante a Guerra Fria reflecte a arrogância exibida por outro grupo de personagens que joga com o destino da humanidade. Recentemente, foram descobertos documentos secretos que detalham o modo como a indústria da energia conhecia as relações entre os seus produtos e o aquecimento global. Mas, ao contrário dos planos nucleares do governo, o que a indústria detalhou foi realmente posto em prática.

Na década de 1980, companhias petrolíferas como a Exxon e a Shell realizaram estudos internos sobre a libertação do dióxido de carbono libertado por combustíveis fósseis, e previram as consequências planetárias dessas emissões. Em 1982, por exemplo, a Exxon previu que por volta de 2090 os níveis de CO2 duplicariam relativamente aos do século XIX, e que isso, segundo os conhecimentos científicos da altura, faria subir as temperaturas médias do planeta em cerca de 3°C.

Mais tarde nessa década, em 1988, um relatório interno da Shell previu efeitos semelhantes, mas também apontou que o CO2 poderia duplicar ainda mais cedo, até 2030. Em privado, estas companhias não contestavam as ligações entre os seus produtos, o aquecimento global, e a calamidade ecológica. Pelo contrário, a sua investigação confirmou essas ligações.

A avaliação da Shell previu um aumento de 60 a 70 cm no nível do mar, e notou que o aquecimento poderia também promover a desintegração do Manto de Gelo da Antárctida Ocidental, o que resultaria num aumento global do nível do mar entre “cinco a seis metros”. Isso seria suficiente para inundar completamente alguns países situados em baixas altitudes.

Os analistas da Shell também avisaram relativamente ao “desaparecimento de ecossistemas específicos ou à destruição de habitats”, previram um aumento de “derramamentos, cheias destrutivas e de inundações de terras aráveis em baixas altitudes”, e referiram que “seriam necessárias novas fontes de água potável” para compensar as alterações na precipitação. As mudanças globais na temperatura da atmosfera também “alterariam drasticamente o modo como as pessoas vivem e trabalham”. No fim de contas, concluía a Shell, “as alterações poderão ser as mais importantes já verificadas na história documentada”.

Por seu lado, a Exxon avisou relativamente a “eventos potencialmente catastróficos que devem ser considerados”. Tal como os especialistas da Shell, os cientistas da Exxon previram aumentos devastadores do nível do mar, e avisaram que o Midwest americano e outras regiões do mundo poderiam transformar-se em desertos. Como contraponto positivo, a empresa referia estar confiante de que “este problema não seria tão significativo para a humanidade como um holocausto nuclear ou a fome mundial”.

A leitura destes documentos é algo de assustador. E o efeito é tão mais terrível quando confrontado com a recusa dos gigantes petrolíferos em avisarem o público sobre os danos previstos pelos seus próprios investigadores. O relatório da Shell, com a menção de “confidencial”, foi inicialmente divulgado por uma organização noticiosa holandesa no princípio deste ano. O estudo da Exxon também não era destinado à distribuição externa; foi indevidamente divulgado em 2015.

Estas empresas também nunca se responsabilizaram pelos seus produtos. No estudo da Shell, a empresa defendia que o “maior ónus” da intervenção contra as mudanças climáticas não recaía sobre a indústria da energia, mas sobre os governos e os consumidores. Este argumento poderia fazer sentido se os executivos do sector do petróleo, nomeadamente os da Exxon e da Shell, não tivessem mais tarde mentido sobre as mudanças climáticas e impedido activamente que os governos implementassem políticas para energia limpa.

Embora na década de 1980 os detalhes do aquecimento global fossem estranhos à maior parte das pessoas, as empresas que contribuíam para a maior parte do fenómeno pertenciam ao grupo restrito de quem tinha uma melhor noção do fenómeno. Apesar das incertezas científicas, o ponto principal era este: as empresas petrolíferas reconheceram que os seus produtos libertavam CO2 para a atmosfera, compreenderam que isto levaria ao aquecimento, e calcularam as consequências prováveis. E depois escolheram aceitar esses riscos em nosso nome, às nossas custas, e sem o nosso conhecimento.

Os planos catastróficos de conflito nuclear que Ellsberg vira na década de 1960 eram uma Espada de Dâmocles que, felizmente, nunca caiu. Mas as previsões secretas da indústria petrolífera sobre as alterações climáticas estão a tornar-se realidade, e não de forma acidental. Os produtores de combustíveis fósseis transportaram-nos intencionalmente até ao futuro sinistro que receavam através da promoção dos seus produtos, da mentira relativamente aos seus efeitos, e da defesa agressiva da sua quota no mercado da energia.

À medida que o mundo aquece, os constituintes do nosso planeta – os seus mantos gelados, florestas, e correntes atmosféricas e oceânicas – estão a ser modificados irreparavelmente.

A quem assiste o direito de prever estes danos, e de seguidamente escolher que a profecia se cumpra? Embora os planeadores militares e as empresas de combustíveis fósseis tivessem a arrogância de decidir qual o nível de devastação que era apropriado para a humanidade, só as Grandes Petrolíferas foram suficientemente ousadas para levar a sua avante. Isso é claramente inaceitável.

Benjamin Franta

Benjamin Franta, ex-investigador do Centro Belfer de Ciência e Assuntos Internacionais da Harvard Kennedy School of Government, é doutorando na Universidade de Stanford, onde sua pesquisa se concentra na política climática e na manipulação da ciência., ex-pesquisador do Centro Belfer de Ciência e Assuntos Internacionais da Harvard Kennedy School of Government, é doutorando na Universidade de Stanford, onde sua pesquisa se concentra na política climática e na manipulação da ciência.

 

 

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