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Fritos, sujos e mal pagos
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23-01-2015

O calor em 2014 foi capaz de aquecer em mais de meio grau um caldeirão com 1,3 quatriliões de litros de água. Estamos falando da superfície dos cinco oceanos.

Quantas bombas nucleares seriam necessárias para elevar em meio grau a temperatura dos oceanos que recobrem uma área equivalente a 71% da superfície da Terra?

Estamos falando de uma panela de água salgada com 357 milhões de km2, profundidade média de 3.870 metros (pode chegar a 11 quilómetros nos abismos, as fossas oceânicas).

Seja qual for a resposta, essa guerra já aconteceu.

No ano passado, a temperatura no planeta atingiu níveis sem precedentes nos registos históricos desde 1880, coligidos pela agência espacial norte-americana, a NASA.

Na superfície do mar ela ficou justamente 0,57% grau acima da média do século passado.

Insista-se: vivemos sob um bombardeio de calor capaz de aquecer em mais de meio grau um caldeirão com cerca de 1,3 quatrilião de litros de água salgada.

Na terra, o aquecimento deu um salto ainda maior: um grau acima, na mesma base de comparação.

Um comunicado da direcção do Instituto Goddard de Estudos Espaciais, vinculado à NASA, não deixa muitas dúvidas quanto a dimensão estrutural desse bombardeio sem estrondo, por isso mesmo ainda mais ardiloso e fatal: ‘Este é o mais recente de uma série de anos quentes, de uma série de décadas quentes. Se um ano isoladamente pode ser afectado por padrões climáticos caóticos, as tendências de longo prazo podem ser atribuídas à mudança climática, dominada, agora, pelas emissões humanas de gases do efeito estufa”.

A referência comparativa a 1880 ilude.

Na verdade, a água da panela sofreu seu principal processo de aquecimento em um intervalo de tempo mais curto e mais recente, evidenciando uma aceleração cumulativa do bombardeio metafórico.

Se hoje a Terra está 0,8% mais quente do que em 1880, o fato é que o termómetro climático se mexeu com mais celeridade sobretudo nas últimas três décadas.

Com excepção de 1998, os 10 anos mais quentes de que se tem registo ocorreram depois de 2000.

A espiral progressiva dá ao recorde de 2014 a dimensão de um alarme estridente que lideranças à directa e à esquerda fingem não ouvir.

As bombas da insanidade sistémica estão explodindo em velocidade cada vez maior na “panela”, ainda que a percepção de quem está dentro seja vaga e episódica.

A referência ao sapo cozido em sua própria tolerância é conhecida mas válida: jogado em água fervente ele reage e salta em busca da vida; cozido em fogo baixo o distraído não reage ao martírio incremental, até que a água borbulhe a 100º.

Aí será tarde demais para saltar em busca da vida.

Os dados da equação climática sugerem que a humanidade aproxima-se dessa segunda hipótese no timing para refrear as causas do aquecimento global.

Não é força de expressão

Os números da contagem progressiva oferecidos há poucos dias pela NASA sequer provocaram bocejos nos sapos dirigentes responsáveis pelo caldeirão em banho-maria avançado.

Tudo se passa como se o tempo fosse um aliado, quando a novidade é que deixou de sê-lo há centenas de folhas do calendário.

A sorte da humanidade equilibra-se em uma estreita linha de uma década e meia, se tanto, é o que já se disse mais de uma vez neste mesmo espaço.

Não é um exercício de alarmismo por tentativa e erro.

É o consenso, ou pelo menos a quase unanimidade do que enxerga a ciência.

Uma década e meia seria o tempo disponível para limar divergências, pactuar metas, dividir cotas e iniciar, por volta de 2020, um corte de 40% a 70% no volume de emissões de gases de efeito estufa, a ser concluído até 2050.

A base de referência seria as emissões de 2010.

Detalhe: aquilo que se preconiza como imperativo para as próximas três décadas destoa brutalmente da tendência registada nas três anteriores.

As emissões no período recente, como reiterou a NASA no comunicado sobre o recorde de 2014, só fizeram crescer, em degraus robustos.

A redução heróica projectada agora marcaria a derradeira chance de se evitar que a temperatura média no planeta aumente mais de 2 graus Celsius até o final deste século.

Os pesquisadores - excepto a turma financiada pelo partido republicano dos EUA- advertem que qualquer escorregão além disso adicionaria um roteador endiabrado à dinâmica dos eventos extremos, anulando o esforço de readaptação da actividade humana no planeta.

O sapo, então, mesmo consciente do fim, não teria mais alternativas, emparedado entre o caldeirão e a brasa.

No final de 2015, um novo protocolo do clima - em substituição ao falido “Kioto” - será definido na reunião do IPCC, em Paris.

É justo nutrir esperanças de que alguma decisão relevante saia de um fórum dominado pelos mesmos interesses, a mesma lógica, responsáveis por terem jogado a humanidade no actual precipício entre a deflação recessiva e a estagnação secular?

Dito de outra forma: em um mundo submetido a forças que consideram irrelevante coordenar acções e expectativas para afrontar a natureza intrinsecamente desequilibrada dos mercados, que espaço existe para o planeamento global da equação climática?

Mais que a indiferença diante da fatalidade, a prostração revela que a resposta à encruzilhada ambiental transcende o ambientalismo.

Ressalvadas honrosas excepções, ao menos no Brasil, o ambientalismo sempre resistiu em associar a sua luta à superação da ordem económica que está na raiz de seus desafios.

Guardadas as particularidades locais e individuais, tudo se passa como se a solução fosse extrair “água limpa da merda” - sem alterar as bases da imensa cloaca sistémica que devasta e empesta os recursos que formam as bases da vida na Terra (Projecto de Bill Gates).

Exemplo dessa contradição é o ambientalismo farto agora na alfafa chique das propostas do decrescimento eco neoliberal.

O que temos aqui? Uma confortável simbiose entre segmento fiscal e vapores sustentáveis. Ou seja, água da merda para os pobres; Perrier para as gargantas selectas.

A classe média semi-culta e semi-informada se inebria nas tertúlias na Casa do Saber, enquanto a operam na eficiência dos mercados livres acrescentando bombas de calor nos cinco oceanos.

Não vamos além da sorte do sapo por aí.

Neomalthusianos tingidos de verde deveriam admitir, a bem da verdade, que a bandeira do “decrescimento” já se encontra em vigor em sociedades díspares, da África subsaariana às economias europeias às voltas com a fome, deflação e desemprego, sob o torniquete de Merkel & FMI e interesses neo-coloniais.

Os desdobramentos em marcha podem ser evocados como os alvores de uma aurora sustentável?

A ascensão fulminante do Syriza numa Grécia comprimida num torniquete mais devastador que o da Depressão dos anos 30 nos EUA (conforme Joseph Stiglitz, no El Pais); assim como a liderança do Podemos, na Espanha - campeã europeia no quesito desigualdade (1% detém riqueza superior a dos 70% mais pobres) sugerem que não.

Quase 1/3 da humanidade ainda depende da queima de lenha ou carvão (leia-se, devastação de florestas) para preparar uma simples refeição.

Cerca de 850 milhões de seres humanos vivem no calabouço da fome crónica.

Outro tanto moureja a terra nua dispondo tão-somente da força muscular para extrair seu sustento.

Mais decrescimento que isso?

Para escapar à lógica do fim do mundo - se é que ainda há tempo - é preciso incorporar as circunstâncias da história realmente existente à equação sustentável.

Nas últimas décadas, a desregulação imposta a todos os níveis da actividade humana agravou os contornos da crise social e ambiental.

Se os fundos especulativos conseguem dobrar o rendimento dos detentores da riqueza financeira em prazos curtíssimos, todos os demais sectores da economia capitalista terão que perseguir idêntica voragem. Do contrário, accionistas insaciáveis fritarão o fígado de gestores empedernidos numa grande fogueira de acções nas Bolsas de Valores.

A dominação financeira impõe há mais de 40 anos uma aceleração predatória em todas as latitudes da terra e dos mares; do macro ao micro.

Acelerar, no léxico dos mercados, significa desregular. O quê? Tudo: da protecção ao trabalho à exploração das riquezas naturais.

A grupo do decrescimento considera ambientalmente indesejável buscar o pleno emprego no século 21.

Acreditar numa reforma tributária capaz de tornar o emprego parcial - ou até mesmo sazonal - apenas uma das âncoras da sociedade regida pela universalização da cidadania plena?

Na verdade, Kalecki e Keynes, depois de Marx, já haviam farejado a implicância dos finos com uma situação de mercado de trabalho aquecido, capaz de ampliar o poder de barganha da classe assalariada.

Ou não será o desmontar desses alicerces (fim do desemprego seguro, por exemplo) um dos motivos da satisfação dos endinheirados com a agenda Levy no Brasil?

A alavanca que move o jogo do fim do mundo não é a dos direitos sociais - entre eles o direito ao emprego digno - mas, sim, os direitos de saque sobre a riqueza disponível, exercido pela papelaria rentista, cujo montante supera US$ 600 triliões: 10 vezes a soma do PIB planetário.

A impossibilidade física entre uma coisa e outra, entre os limites do planeta e a ganância rentista, esse o moinho satânico do nosso tempo.

Nada disso isenta a negligência da esquerda diante do colapso que a reunião de Dezembro em Paris prenuncia.

As linhas da urgência ambiental e a da prostração política indicam que a batalha da mitigação, por ora, foi perdida.

Resta saber se a esquerda será capaz de recuperar o tempo perdido para dar à humanidade uma segunda chance, para além da sua metamorfose em um sapo cozido na desconcertante conivência com o caos.

Saul Leblon

 

 

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